sábado, 14 de julho de 2012

Flambé de truta com geleia de rosas brancas


Matei hoje pela segunda vez e não me arrependo! Não é que eu não tenha muito respeito à vida, mas há pessoas que não merecem viver, porque incomodam quem pode melhorar o mundo.

Talvez fique presa muitos anos. Ou talvez não! De qualquer modo, não me importará sabê-lo, desde que me dêem trabalho na cozinha o que, pensando bem, será muito improvável!

Não me lembro exactamente como se passaram os factos, nem a razão porque eu, que abomino a alvorada, me determinei a levantar-me cedo para dirigir-me a sua casa,  tocar à campainha a pretexto de uma qualquer conversa. Quando me abriu a porta e viu o brilho dos meus olhos e, na minha mão, brilhando mais que eles, uma faca de trinchar carne, prostrou-se de joelhos a suplicar-me que o poupasse e prometeu-me coisas que jamais me satisfariam.

Creio que algum sentimento de desconforto terá ficado oculto desde a ceia do dia anterior, e se manifestou contra a minha vontade, num momento de alguma sonolência dos sentidos.

O meu advogado não se conteve e sorriu quando lhe contei das minhas razões; o Ministério Público não precisou de grande investigação para obter provas de que fora eu a autora do homicídio. No julgamento, pediu uma condenação vigorosa para quem - segundo as suas palavras - " tinha patenteado um tão absoluto afastamento dos sentimentos mínimos de piedade e um desprezo tão acentuado pelo valor da vida humana". Desvalorizou a confissão, porque me tinha recusado a contar tudo; mas eu tinha contado tudo! Enfim, contei tudo o que merecia ser contado.
De seguida sentou-se, afirmando-se convicto de que seria feita justiça; embora, em bom rigor, nunca especificasse qual a decisão justa no meu caso. 

Houve um momento em que suspeitei ter merecido a solidariedade e simpatia de um velho juiz-asa que me olhava, com aparente ternura; mas mal esta sensação começava a reconfortar-me, já o juiz meneava a cabeça e atirava para o ar com desprezo: «por causa de cozinhados, tch!» .

Apeteceu-me gritar-lhe que não foram os cozinhados, mas a incapacidade de um boçal em apreciá-los. Que o meu erro nada tinha a ver com tempos de cozedura, com grau de xaropes ou consistência de molhos, mas com o facto de, após tantos anos de solidão, o meu coração ter perdido a sagacidade e se ter deixado enlevar por um Adónis impreparado para iguarias, harmoniosas, requintadas - delícias terrenas que haviam de ficar na história da restauração de Lisboa, ao lado dos restaurantes de nomes que apenas homens endinheirados pronunciavam com naturalidade. Mas não me pareceu necessário enfatizar uma evidência! 

Que percebem os juízes de boa comida, se nunca provaram a minha! Eles, que frequentam sempre o mesmo restaurante com a rigidez monástica de uma andorinha. 

Certa vez, um grupo deles entrou-me pelo restaurante dentro. Andavam à procura de outro poiso - disseram-me ; se apreciassem a minha cuisine, fariam do meu sítio o seu local de tertúlias. Eu não me importava que aquele fosse o seu novo local de tertúlias, desde que apreciassem o resultado de longas noites de experiências numa cozinha tão asséptica e tão milimetricamente disposta que mais facilmente pareceria um laboratório, que o reino de Pantagruel. 

Com a carta na frente, ficaram largos minutos trocando opiniões e fazendo ares, ora de espanto, ora de questionamento, ora de surpresa. Dirigi-me ao grupo julgando-os indecisos sobre a escolha, evidentemente difícil, entre o pato au foie-gras com molho de whiskie e o peixe-galo com arroz de algas verdes. Para minha surpresa, a indecisão prendia-se com a escolha do tema da discussão para o almoço!

Irritei-me perante tanta indiferença, tirei-lhes violentamente a carta e acrescentei à mão, no cimo da lista dos pratos do dia: «tertúlia: 50 euros». 

Perceberam. Levantaram-se. Foram-se embora proferindo latinices que seriam seguramente impropérios.

Que azar o meu, que um destes comensais fizesse parte do tribunal que me julgou! Se ao menos tivessem provado o pato, ou o peixe-galo, talvez hoje eu não estivesse presa.  

A noite, forrada de silêncio e vestida do enevoado pardacento das horas, é o período mais propício ao trabalho criativo. Quase sem esforço, desfila uma passerelle de sofisticados sabores, requintados odores. Depois, basta-me procurar soluções gastronómicas que lhes dêem consistência e textura. 

Também assim foi naquele tempo de espera, entre o encerramento da audiência de julgamento e o momento do veredicto final. Nos primeiros dias, porque não queria pensar; nos seguintes, para matar a ociosidade; depois, por necessidade de artista, incapaz de contrariar a torrente de ideias geniais, aptas a satisfazer as mais exigentes papilas gustativas!

Dir-se-ia que a espera me aguçara a sensibilidade.
A ocasião exigia minúcia e recato, não fosse a minha colega de cela roubar-me as receitas com que pretendia surpreender os muitos clientes que haviam de estar à espera da minha libertação para voltar a comer bem.
Era uma questão de dias. 

Afinal, como poderiam manter-me presa sabendo que a culpa não fora minha, mas do triturador sem gosto que se me atravessou na vida, que me pedia ostras cozidas e acreditava que as trufas nasciam em árvores!

Começava até a agradecer estar presa. 
A tranquilidade fria da prisão potenciava a efervescência dos sentidos e o requinte da imaginação. Era como um retiro, apenas tendo a desfavor a indefinição do seu fim, mas a enorme vantagem da gratuitidade e a noite, longa, à minha disposição.

Porém, este bem-estar começou a desfigurar-se quando substituíram a surda-muda que compartilhava a cela comigo, por uma mulher sem maneiras nem pudor, que levantava a saia para ajeitar a blusa com puxões secos e desconcertantes, deixando visível a coxa grossa de quem puxa mais vezes o arado que o cavalo, e cujo pesado corpo não se aquietava, provocando com o embate das suas carnes contra o catre, um restolhar outonal de folhas. 

Estar só nunca me assustou.
O único receio foi apenas o de que a solidão, cansada de si mesma, se tornasse meu títere, impondo-me o convívio com as minhas obsessões e os meus demónios, aproveitando-se das minhas  fragilidades; que me fizesse figurante de histórias criadas pelos medos, compelindo-me a participar nelas. Nesses momentos duvidava de tudo. Acreditava momentaneamente numa coisa e no seu contrário. Tal como me aconteceu numa daquelas noites menos inspiradas, nesse espaço de algibeira com dois corpos colocados a par, como fatias de pão à espera do recheio. E questionei tudo: os porquês do meu acto, as condições em que o executei, as consequências. Tudo!
Bom, tudo não! Nunca questionei a minha genialidade. 

Ingrato! Sensaborão! Rural! Ignorante sem paladar...! 

Por minha vontade ficaria horas a adjectivar a sua insignificância ... e enquanto o denegria, dei-me conta de que não sentia pena. Nem remorso. Que poderia dormir sossegada, planeando novas delícias para quando fosse liberta – se ao menos alguém me trouxesse papel e lápis! 

O único impedimento à sublimação do prazer era o ressonar monocórdico, constante e aflautado da minha companheira de cela. Se quer ressonar, pelo menos que o faça com convicção, sempre desprezei ratos querendo parecer-se com touros. Quem foi condenada por matar o vizinho que lhe mudou os marcos, podia ostentar um rugido nocturno que fizesse jus ao feito! 

A repetição tornava aquele som cada vez mais incaracterístico, mas cada vez mais próximo, cada vez mais o mesmo, interferindo nas doses do borrego assado com molho de frutos silvestres acompanhado de batatinhas novas, a impedi-las de alourar no forno da minha imaginação. Tentei controlar-me, mas a persitsência começava a enervar-me mais do que auxiliares de cozinha apanhados a usar, nos cozinhados, o azeite fino de aspergir saladas.

Sossegou durante uns minutos e redobrei no entusiasmo da criação!  

Preparava um cozido de pescada com papas de abóbora polvilhada de canela e gengibre moídos, quando recomeçou. Aquela repetição sonora de mau-dormir, a dificultar-me a concentração. O cheiro fresco e doce da canela deslizando acetinadamente pelo fio da faca muito afiada, a confundir-se com o cheiro de madeira a desfazer-se por causa daquela motosserra de bateria inesgotável – a aurora quase a anunciar-se e ela ali, a abrir e fechar a boca como peixe debatendo-se no areal da Costa Verde ansiando por soltar-se das redes de arrastão. 

Cala-te!, insisti três vezes. 

E das três vezes o eco trouxe-me vozes de outras celas impondo-me silêncio. E a roliça mantinha-se a gemer, ignorando os estragos. 

Quando a meio da decoração de um bolo de baptizado a camponesa atarracada e engordada a pão de milho e azeitonas estremeceu, outra vez, no seu eco das profundezas, vi-me de repente perto dela, lancei-lhe as mãos ao pescoço e fiz tanta força como só me lembrava de fazer para amassar a bola de carnes de Trás-os-Montes antes de a por a levedar. 

De princípio ainda se ouvia um silvo a debater-se para se libertar. Depois esse ténue sinal foi enfraquecendo cada vez mais. Até que por fim pude, em sossego, colocar por sobre o glacé mais alvo que alguma vez consegui, uma pequenina estátua onde dormitava, risonho na sua inocência, um rosado recém-nascido, tranquilo por poder descansar numa cama feita de um bolo tão suave que ninguém teria qualidade suficiente para apreciar.


Lídia Ponti

pintura: "Sobremesa" Botero

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