terça-feira, 17 de julho de 2012

A silenciosa sombra dos sonhadores [I]



Mariana levantava-se todos os dias à mesma hora, depois do beijo com que sua mãe, D. Francisca, lhe anunciava o acordar. Abria a janela do quarto, cumprimentava com uma vénia o senhor da estátua que se erguia defronte, na praça principal da vila, e ficava alguns minutos a conversar com ele. Dizia-lhe dos sonhos que tivera,  os acontecimentos do dia anterior, a sombra da mãe, presa na recordação do marido, seu pai, o corpo do avô, na sua cadeira de rodas, das suas mãos de veludo que fechavam a porta a todas as incertezas e receios. Em troca, aquele senhor muito hirto dava-lhe notícias da vida da cidade, do que avistava do alto, dos beijos dos amantes ao entardecer sob a sombra do seu pedestal, dos pequenos que ali se sentavam a aguardar a chegada dos pais após a escola. Por vezes deixava escapar um lamento sobre o formigueiro de ter de permanecer tantas horas hierático, enquanto o sol se não punha, ou sussurrava queixumes sobre a humidade ou o vento incessante dessa noite.

Ana, a criada, com uma infinita paciência e com a lentidão que a idade e o reumatismo impunham, interrompia com doçura o ritual da conversa, lembrando a Mariana que a aguardavam à mesa para o pequeno-almoço e Mariana saía a correr pelas escadas abaixo, indiferente aos chamamentos da velha ama, ó menina, ó menina, que ainda cai e parte uma perna, olhe a mãezinha que se apoquenta!

Quando dois anos antes se mudaram para aquela casa, Mariana não sabia quem era aquele senhor grande, de bigode farto e braço esticado, que apontaria o infinito se entre o infinito e o braço não se erguesse, solene e imponente, a casa de D. Gregória. 

De todas as pessoas da aldeia sobre quem Mariana questionara o velho General, D. Gregória tinha sido a única que o fizera desviar a conversa. Da primeira vez Mariana pensou tratar-se de uma distracção, mas quando, dias depois, o questionou directamente sobre o que andaria D. Gregória a fazer nos seus terrenos da Atafona de que toda a gente falava, percebeu que esse era tema sobre o qual nunca obteria respostas, e educadamente passou a evitá-lo. 

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