domingo, 15 de julho de 2012

testamento vital



"Trinta anos em que julguei conhecê-lo, para me dar agora conta de quanto estava errada! De como é frágil, afinal, a fortaleza quando a água serena, mas persistente, lhe vai erodindo os alicerces. Como explicar este pedido que me faz, de mãos cruzadas sobre o peito, eu a a evitar o toque e o seu olhar!

Quando a morte nos sussurra com malícia o código com que abriremos a porta do inferno, diz-se, mostra-nos o balanço do que foi a nossa vida para, perversamente, nos desesperançar  da salvação divina. Porém, lucidamente quantas vezes insuspeitadamente - apressa-se o moribundo a  pedir desculpas aos que ficam, na tentativa de salvar, neles, a memória do que foi. Mas tu não pedirás desculpas!
E como terias desculpas a pedir se fosses capaz, por uma vez que fosse, de te vestires da humildade que sempre desprezaste e que seria tão útil neste momento" - não lhe falou e ajeitou-lhe a máscara que o mantinha vivo, como o faria antes, quando ele não dependia dela e ela lhe ajeitaria a máscara porque sim, porque era assim, tinha de ser assim.
"Talvez pense que carinhosamente o retratarei com doçura, para lhe aligeirar o caminho, mas se assim for, está enganado!" – pensou, antecipando o prazer da perfídia da verdade - "sempre levei muito a sério os pedidos que me fazem, para mais de um moribundo, e pretendo cumprir a tua última vontade com o mesmo rigor que me acusavas de usar nas tarefas «comezinhas», «pequeninas, de ser pequenino como tu», repetias-me, «a desmerecer tanto tempo e tanta minudência»; «incapaz em coisas grandes",  lamentavas, “que pena que resumas a tua vida ao ocupar o espaço do teu corpo”, ironizavas! E eu ouvia-te, mantendo obstinadamente o meu labor de formiguinha paciente mesmo nas coisas mais banais, para que o pensamento se agarrasse com força às tais pequeninas coisas e não fosse tentado a revelar-se no olhar, nas palavras, nos gestos, não denunciasse os sentimentos que tentava adormecer. 

Sei hoje, no entanto, que o fazia sobretudo para te aborrecer; porque poucos aborrecimentos podia dar-te sem represálias (quanto tempo perdido…) e a minha indiferença (quanta simulação...) aborrecia-te, embora nunca o confessasses!

Será uma espécie de irónica vingança poder dizer-te, a teu pedido, o que penso a teu respeito. Dizer, portanto, sem remorso, o que estava destinado a guardar para mim. 
Indago-me genuinamente sobre o porquê! Pensarás que serei incapaz da crueza da verdade, ou não a temes?  Acreditarás no poder redentor das palavras que te serviriam de preparação para o inferno? Talvez suponhas que usarei de piedade!
Piedade! 
Um sentimento de que jamais fizeste uso em vida – noto-te surpreso, como se me adivinhasses os pensamentos! Sim, em vida, porque não é vida o que agora se vislumbra nos teus olhos. Piedade, «o sentimento piegas, adormecente, incapacitante, de gentinha sem garra nem ideias, nem ousadia» … as tuas palavras fazem eco na minha memória!"
Antes de iniciar o retrato parou um pouco, para o aconhegar. Puxou-lhe o cobertor até ao pescoço; ajeitou-lhe a almofada para que estivesse confortável quando as suas palavras de mulher contida se transformassem no espelho da sua existência -" por uma vez na vida, que alguém ouse dizer-lhe o que sente!" E soube nesse momento que, dos 30 anos de casamento, seria a vez em que mais palavras diria sem um olhar censor, uma palavra amarga cortando-lhe a vontade de se pronunciar.

- "Mas porquê agora?" - questionou!
- "Porque quero saber como me vês!, disse entre duas penosas respirações! Se sabes o que fui para ti, porque o fui, que o fui por ti!" - notou-lhe ansiedade nas palavras, suportada pelo  "fui" repetido a adivinhar o fim.

Estranhou a quietude, o ar de quem se abandona ao veredicto do juiz como se o desejasse por merecido, ou do crente que ouve, do padre, o rol de padres-nossos e avé-marias que servirão de apaziguamento à ira divina.
E preparou-se para o retratar, com um misto de coragem enrigecida pelo ódio, e de receio, não fosse o opressor ressurgir de novo, daquele corpo magro, inerte, em redor do qual quase podiam vislumbrar-se as mãos da Moiras na procura ansiosa do fio da vida para o cortarem de um só golpe e o conduzirem a Hades.
Neste momento, antecipando a insuportabilidade da descrição que pedira mas não teria coragem de ouvir, agarrou o peito, como se pretendesse evitar que, no momento derradeiro, um sinal de humanidade contradissesse toda a sua vida; deixou escapar um esgar irónico de quem é surpreendido perante uma arma cujo tiro sabe ser incontrolável e deixou-se ir, na viagem tenebrosa em que a fizera viver durante tantos anos.
E só então ela pode abrir a mala onde guardava as humilhações, as libertou e, descalça, seguiu o seu caminho, sentindo sob os pés o calor aconchegante do sol nos trilhos novos.

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