segunda-feira, 10 de setembro de 2012

roberto juarroz



Há poucas mortes inteiras.
Os cemitérios estão cheios de fraudes.
As ruas estão cheias de fantasmas.

Há poucas mortes inteiras.
Mas o pássaro sabe em que ramo último poisa
e a árvore sabe onde termina o pássaro.

Há poucas mortes inteiras.
A morte é cada vez mais insegura.
A morte é uma experiência da vida.
E às vezes são precisas duas vidas
para poder completar uma morte.

Há poucas mortes inteiras.
Os sinos dobram sempre o mesmo.
Mas a realidade já não oferece garantias
e não basta viver para morrer.

                       ROBERTO JUARROZ - n. 1925, Argentina

sábado, 8 de setembro de 2012

Netos




Custa acreditar, olhando-me no reflexo do lago - há muito que bani os espelhos lá de casa - que já fui menina. Menina dessas que andam de cabelo preso balançando ao ritmo dos saltinhos bamboleantes de lacheira na mão a caminho da escola, menina de risinhos tímidos e cochicantes, ruborescendo com os olhares dóceis dos meninos.

Nesse tempo em que fui menina como os outros que da minha idade foram - e já se foram tantos -  eu habitava locais mágicos, cuja porta se abria com a voz delicada e lenta do meu avô e acreditava viver no mundo da magia.

Esse eram os dias dos milagres. E eu não sabia. 

Candidamente desconhecia a existência dos sonhos a impulsionar a vida. A vida eram os sonhos e sonhos era o nome da vida, um nome que não era preciso e por isso ninguém mo tinha ensinado. E eu não o sabia.

Eu vivia nas histórias do meu avô e nas recordações ténues de que me lembrava, ao acordar e que a minha cabeça vadia, livre e irreverente inventava durante a noite por conta própria, para se vingar da minha quietude contemplativa e obediência diurnas.  

Depois, aos poucos, nomearam-me as certezas que tinha do mundo: sonhos!
Todas as certezas se esvaneceram quando lhes deram um nome e lembro-me de pensar o que fazer com os cacos e de como abriria a porta, ou se ela se abriria de novo para mim.

Lembro-me. Foi no dia em que ficou vazia a cadeira do avô e a sua presença passou a assentar em todos os objectos em que tocara, e os nossos dedos passaram a demorar-se mais sobre eles.

Foi no dia em que no seu lugar à mesa não havia comprimidos coloridos com nomes bizarros que o avô inventava e de que se despedia, antes de os engolir, depois de lhes fazer recomendações quanto ao trajecto, ou os aconselhar quanto ao que dizer  aos que já lá estavam quando os encontrasse. Fazia-o porque nos divertia e pedia-nos conselhos sobre os conselhos que devia dar. E nós, por vezes, não concordávamos e o avô encontrava soluções em que mesmo o vencido não sentia ter ficado a perder.

Sonhos, Era então esse um nome de quimeras e não da vida. A meta, não o caminho. O infinito, não a porta aberta pela voz do meu avô. 

Cresci retrocedendo, aos poucos, ao tempo inicial, mas evidente. 

Sou de novo uma menina a saltitar por entre promessas de risos, quando abro a porta, agora, eu. 
- Schhhh! - Faz-se silêncio! Os olhos ganham brilho e as asas nascem-lhes no dorso -Vamos entrar  na terra dos sonhos, digo!

Dos sonhos! Abro-lhes a porta das histórias onde viajo com eles no tempo dos milagres. Aqui estou eu, por força da regeneração, adicta, de novo desta condição sonhante, lançando-me para a meta inatingível. Por isso, se eu morrer pelo caminho desta jornada, não lamentem, nem me estranhem.

Será, seguramente, de exaustão onírica.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Hum, hum; sim, sim; pois!


René Magritte


Devias dizer em frente ao espelho, todos os dias, que vais mudar, sei lá, ser mais corajoso, mais firme - e eu a perguntar-me porque tenho de regressar a casa a cada fim de dia,  e a demorar-me cada vez mais tempo para chegar, por causa do trabalho, sabes, malditos clientes que que arranjam sempre defeitos nos projectos, para me alargar o tempo numa qualquer esplanada de café, ou num solitário banco frente ao rio, ali imóvel, sem pressas, sem constrangimentos na sua serenidade húmida e apelativa, ou no carro, a olhar a luz que me chega da janela da sala e a pensar como seria bom vê-la fechada e ser eu a abri-la quando chegasse a casa ao fim do dia.

Ouço-te repetir que tenho de mudar, que tenho de fazer frente ao patrão que me mata de trabalho e que sou um frouxo e que se fosse outro já tinha sido aumentado e se, e se, e se. E repito o que sabes, que sou um velho aos 50 anos e já ninguém muda, que sou o mesmo de quando casámos, apenas mais cansado das tuas recriminações, dos azedumes.

Insistes que não, que mudam, que então não mudou o Manuel, que se tornou um homem tão simpático, vê tu, que até já deixou o semblante sombrio e se tornou um exemplo de solicitude? E eu a perguntar-te se queres que mude pelas mesmas razões, depois de tanto sofrimento e de trazer no bolso a incerteza do tempo em que lhe será permitido o sorriso.

Memórias de crianças a correrem pela praia e nós com eles sem medo do ridículo, filmes vividos sem pressa, porque nem o pó, nem os gritos do vizinho acompanhando a música, nem a louça acumulada na cozinha ultrapassavam a barreira do sofá.  E se é para deixares a cozinha assim mais vale que não ajudes, e eu a ajudar e a tentar ser o que tu queres para que o silêncio doce regresse a esta casa a que já não chamo lar, sem conseguir ser esse, nem ser eu.

Vê o exemplo que dás aos miúdos, a falar com a boca cheia, e os miúdos (que são miúdos apenas na tua incapacidade de os veres crescer e a quem com gosto trocarias ainda fraldas e irias buscar à escola se não fosse ridículo fazê-lo a quem está já no secundário, com a dependência de quem não se liberta da necessidade que os outros têm de si, para se sentir amada) a olhar-te com olhos grandes a suplicar-te que pares e tu a veres nesses olhos encorajamento e eu a sorrir-lhes agradecendo e calando, calando cada vez mais, calando-me, calando o que sou para passar a responder-te - hum, hum; sim, sim; pois!, a cada inflexão interrogativa da tua voz em longos monólogos de questões alheias que não me dizem nada.

Mas como é possível que não te lembres se te contei tudo com tanto pormenor, és sempre o mesmo, nunca prestas atenção ao que te digo - e os amigos a pensarem que tenho memória de filigrana para o que me interessa e a ouvirem-te com os mesmos ouvidos moucos, pensando no futebol; na política; em como está cada vez mais linda a filha do José que era tão feinha em pequena, coitada; no automóvel que está por lavar; na crise;  em como pagar as contas ao fim do mês; na mini-saia que pára  provocadoramente junto à  mesa; no empregado que rodopia; no trabalho do dia seguinte à espera sobre a secretária e sei lá o quê mais. E eles hum hum, sim, sim, pois!

Os meus braços a querem fechar-se em torno de ti, a quererem abraçar-te para te dizer quanto lamento que não te aninhes em mim como antigamente, silenciosamente, dolente e sequiosamente como se dependesse deste gesto a força do amanhã e tu a dizeres deixa-te disso, já não temos idade para essas coisas de adolescentes.

E eu a ausentar-se sem que sintas, e a acreditares que ainda estou ali, sentado naquele lugar da mesa, deitado do lado esquerdo da cama, sem te tocar, porque te faço calor, sentado a conduzir-te a cada manhã para o emprego.

Escrevo-te esta carta para te dizer que não contes comigo hoje para jantar, nem para dormir, nem para te desarrumar a cozinha ao preparar o jantar, nem para te aborrecer deixando desalinhado o bibelot tão lindo que tem de estar milimetricamente disposto junto do Sto António da mesa de cabeceira. 

Deixo-te, pendurado no cabide da entrada, um saco cheio de hum, hum, sim, sim, pois!, para o caso de sentires a minha falta. 

Agora vou! Dou-te razão. Nunca é tarde, afinal, para mudar.

Lídia Ponti

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Se um dia vieres, não digas!




Em cada encontro eu levava no peito a decisão de terminar aquele futuro em que não acreditava, mas de que não era capaz de abdicar. Tu dilatavas com ternura o tempo das promessas e e eu desistia, para me agarrar, de novo, a um devir incerto. 

- Gosto dos teus murmúrios, disse-te. Da música das palavras, mesmo que sem sentido - não sabia como perguntar-te ... - e há palavras lindas como partilha, ou .., 
- Pérgola, atalhaste, sorrindo como sorririas olhando a lua, ou o horizonte, ou o infinito, locais a que nunca quiseste pertencer.  

- Quando? perguntei-te!
- Não é ainda o tempo, retorquiste. Aguardemos o tempo das certezas.

E eu, com medo que a certeza viesse mas tu não, afundei-me no ninho do teu peito. 

Aguardei-te, então, sob a pérgola da esperança, como pediste. Vieste sempre só. Nem a certeza, nem o amor, nem a resposta! 

Ficavam sempre enganos, o pudor discreto da espera e o desalento. 

Na tua pérgola murcharam já as flores primaveris. Levou o vento as folhas neste Outono. Trouxe-me a chuva o cansaço de viver alcandorada em perplexidades e meias-palavras e em aparições fortuitas, à espera de uma decisão, de uma entrega, da clarificação de um «cheguei» ou «vou»! 

Sob a pérgola, apenas se mantém intacta a sombra dos nossos beijos, até que outros sombras, de outros teus beijos se lhes sobreponham.

Se vieres um dia para te explicar, não expliques. Deixou de ser urgente essa resposta.

Canto silenciosamente muitas palavras desde então: eflúvio, engano, larva, arbusto, seiva ... mas já não canto pérgola.

Por isso, não venhas, para não ter de dizer-te das palavras mais bonitas do que a tua. Como inefável! Foi essa que aprendi, olhando o orvalho sobre o chão no inverno de todas as mentiras, de um amor feito constante bizarria.

Lembrar como quem esquece é uma benção!  
Lídia Ponti



sábado, 1 de setembro de 2012

O amolador e as memórias no fio da faca


Chega-me da rua, às águas furtadas do meu prédio na cidade, Lisboa, cosmopolita, capital do mundo lusitano, o som de Pã de um amolador de facas.

Consigo traz recordações dos tempos em que, menina, brincava na rua com um bando de gente para quem o amanhã não existia e que largava todas as brincadeiras para acorrer ao encontro do mágico que  amolava facas e consertava chapéus de chuva, qual MacGyver e cuja bicicleta nos parecia tão extraordinária como o carro kit.

O som vai-se esvaindo e fica a pungente antecipação de um tempo, próximo, em que os amoladores não serão senão uma reminiscência, um postal perdido num qualquer escaparate de velharias, ou uma ilustração num livro de velhas profissões.

É na cidade, mas podia ser na minha aldeia. Se, como o poeta, eu tivesse aldeia!

imagem: Genevieve Naylor,
Vida quotidiana no Brasil 1940-1943
disponível em boemiaenostalgia.blogspot.br