sábado, 4 de agosto de 2012

Nevermore ...


Morte! 
Uma das palavras menos comerciais, mais evitadas, mais sofridas e mais silenciosamente proferidas, como que para evitar que a senhora da gadanha se lembre de quem dela fala com tal discrição (como se uma alegoria pudesse convocar-se pela verbalização do seu nome).

Em surdina, em pranto, em espanto ou como constatação do que se sabia inevitável e inexorável, a morte representa o que de mais finito existe no ser humano, o confronto com a sua existência breve, a porta conhecida de um ignoto mundo que apenas cativa aventureiros temerários, ou descontentes da vida. O rio onde Hades espera o viajante, com barca sempre pronta, quantas vezes se revolta pretendendo engolir o marinheiro incauto.E quantas vezes o moribundo se faz de novo à vida, renascido por uma qualquer promessa de bonança.

Na arte, a morte é um tema recorrente, quer como personagem principal (O Sétimo Selo, de Bergman, ceifeira negociando a colheita pelo resultado de um jogo de xadrez), como fantasma pairando sobre a vida da personagem (D. Giovani, de Mozart, ensombrando a personagem como, dizem, o próprio pai de Mozart lhe ensombrava a vivência), ou como símbolo omnipresente como impulso de renascimento constante (de que é exemplo a obra de Frida Khalo). Morte, cenário para a narrativa do absurdo da existência humana  (O Estrangeiro, de Camus), ou vertida em versos invocativos de um desfecho salvífico que elimine o "mal de vivre", o sofrimento da existência, a vertigem desejada (Mário de Sá Carneiro, Florbela Espanca).


Porém, é em The Raven, de Edgar Allan Poe - publicado em 1845 merecendo imediato reconhecimento pelos leitores e pela crítica), que o dramatismo e o desalento da finitude se condensa numa só palavra, proferida por um corvo:  NEVERMORE!

O Corvo (tradução de Fernando Pessoa)

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.


É só isto, e nada mais."Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,

Mas sem nome aqui jamais!Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.

É só isto, e nada mais".E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.

Noite, noite e nada mais.A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.

Isso só e nada mais.Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.

"É o vento, e nada mais."Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,

Foi, pousou, e nada mais.E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."

Disse o corvo, "Nunca mais".Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,

Com o nome "Nunca mais".Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".

Disse o corvo, "Nunca mais".A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais

Era este "Nunca mais".Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,

Com aquele "Nunca mais".Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,

Reclinar-se-á nunca mais!Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"

Disse o corvo, "Nunca mais"."Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!

Disse o corvo, "Nunca mais"."Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"

Disse o corvo, "Nunca mais"."Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"

Disse o corvo, "Nunca mais".E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,

Libertar-se-á... nunca mais!


O Corvo, Gustave Doré



Nota interessante 1 - O facto de a deusa grega escolhida por Poe para poleiro do corvo ser Pallas, deusa da sabedoria, das artes e da Justiça.

Nota interessante 2 - O facto de os vários tradutores portugueses terem preferido chamar-lhe Atena e não Pallas. O nome é, de resto, Pallas Atena.

Sem comentários:

Enviar um comentário