terça-feira, 9 de julho de 2013

Desobliquação


Vinha de longe. Sussurrava monocordicamente, como se qualquer modulação de voz pudesse acordar memórias indesejadas.

Talvez rezasse.Gesticulava muito.Lentamente. Com firmeza de quem acredita nos prodígios.
Aprendera há muito as rezas que sibilava. Há muito. Há tanto tempo, que todos os momentos se detinham nas mãos dos mortos que lhe afagavam docemente os louros cabelos.

Ciclicamente parava a carreta que arrastava com dificuldade. Ficava quieta olhando o céu, adivinhando a chuva. fixando o sol. Medindo a distância entre a terra, tão sólida, tão chã, tão acolhedora, e o céu onde se diz repousarem as raízes. Que anacronismo, pensava, com todas estas letras e o sentimento de um fim que adivinhava prestes.

O peso atrasava-lhe o ímpeto. Arrastava-a. Tolhia-a.
Sobre a carreta repousava, num alinho militar, tudo quanto de material lhe pertencia para além da roupa que vestia e de um pequeno anel que a mantinha viva no dedo polegar.
Era magra. Provavelmente o anel já coubera no dedo a que pertencem os anéis, a assinalar, quem sabe, um noivado, o nascimento de um filho, uma viuvez antecipada.

O chão chegou e parou também. A mulher estendeu-lhe as asas magras e o cão aproximou-se. Por largos momentos, o cão deixou-se aquietar, aninhado naquelas conchas quentes e leves que o afagavam. 

A vida continuou como antes da chegada do cão, ou da mulher. Os mesmos madrugadores de olhos ensonados, no frenesi da pressa de chegar atempadamente a um emprego que a maioria detestava ou suportava como um Karma e para quem a mulher apenas não era invisível porque cheirava mal, provocando ao seu redor uma clareira no amontoado de gente.

Uma clareira, uma clareira num mar de gente, para permitir ver, com maior nitidez, como num palco, o centro do mundo: a mulher suja e velha da carreta e o cão.