quinta-feira, 29 de novembro de 2012

À espera do teu não regresso!



Foi há três meses. Nas mãos cantavam-te esperanças e projectos e sobrava-te o riso abrindo alas à aventura.

Foi há três meses que fiquei envolta no cheiro a mosto da saudade, com um semblante de quem resiste nas margens do mundo e toda a esperança guardada num frasco transparente para se lembrar, fechado para não se volatilizar. O sofrimento é necessário para que a lembrança perdure, como me dizia a tua mãe quando lhe telefonava para me consolar .


Bem sei que não é muito tempo. Sobretudo se se estiver ao sol bebericando o sumo fresco de groselha. Mas nem sei porque me lembro de sol ou de groselha quando a chuva se assenhoria dos tempos e a groselha está ainda no caule aguardando a colheita e a tua sombra se apressou a ocupar o teu espaço na cama, enlanguescendo-se despudoradamente, alongando a noite.

Antes, desconhecia que o vazio que pode esconder-se em cada casa,  à espera do momento para usurpar os afazeres dos dias, para se instalar. Agora sei!

A falta que senti do teu sorriso. O teu cheiro com olhos de erotismo, preso aos mais insuspeitados pedaços de existência. A solidão desgovernada, arrastando-me para programas de televisão que jamais quis ver.


Apoderei-me do teu espaço para preencher com recordações e presenças as sombras que restaram. E enquanto não voltavas.

Se os olhar desgastasse as coisas, há  muito não sorririas na fotografia do quarto.

Durmo desde então com o teu pijama enroscada no pensamento de que te tenho. Calcei as tuas pantufas, li os teus livros, mirei-me no teu espelho. Experimentei o chapéu que te deu a tua mãe quando saíste de casa, assente na cabeça como o pó do tempo. E como me fica bem,

Inebriei-me do teu perfume cobrindo-me a pele e cheirei-me vezes sem conta para te ter comigo. 

E neste ritual de gestos em que me encontro contigo através de mim, apaixonei-me por nós. Depois, por mim. Por mim com o teu cheiro, o teu pijama, os teus livros e até com os teus horrorosos chinelos.


Faltam dois dias para regressares.

Eu sei, faltam dois dias para regressares e nem saudades, nem anseios, nem desejo.
Não voltes! 
Sou demasiado ciumenta para me partilhar contigo.

Hoje nos jardins ...


Cândidas meninas,
que pensam com os saltos de agulha e passeiam  promessas nas minissaias e decotes ...

foto: libertarian planet

domingo, 11 de novembro de 2012

O PÓ DOS OUTROS




Madalena não sabia o que fazer com as mãos, desesperadas em busca de alguma coisa a que se agarrar. Sentia-se, nos seus gestos nervosos, como imaginava que deviam sentir-se as aranhas sob o efeito do insecticida, esgrimindo durante largos instantes as patas contra inimigos invisíveis, contorcendo-se até que se aquietavam definitivamente. Nunca tinha chegado a perceber porque ficava presa  à  luta pela vida de um ser exangue; talvez fosse o fascínio de quem não se acomoda, talvez a tranquilidade final que lhe parecia tão impossível neste momento.

A mão direita procurava ansiosamente onde se agarrar para preencher o vazio do cigarro, como uma aranha. Para ocupar a mão foi comprar um gelado.

Levou a mão à mala em busca do passe do metro e reparou que não o tinha. Talvez tivesse ficado sobre a mesa quando esvaziou desesperadamente a mala e as gavetas em busca de um cigarro esquecido. Ou talvez tivesse ficado no bolso do casaco que as frias manhãs aconselham, mas de que o entardecer morno prescinde, e que deixara pendurado no cabide da farmácia. Lamentou o dinheiro que ia gastar desnecessariamente, dirigiu-se à bilheteira e esperou a chegada do metro.

Quando entrou na carruagem procurou um assento livre.Sentou-se e com o abandono de quem chega à meta, fechou os olhos pousando, sobre a mala, a mão agarrando o cone de gelado derretendo-se, a querer espreguiçar-se para a saia de linho, indiferente à falta de tempo de Mariana para tratar da roupa e da falta de dinheiro para a lavandaria.
Um rapaz a quem a magreza salientava as maçãs de rosto, mal encarado, de barba por fazer, com uns óculos escuros que não permitiam adivinhar o contorno dos olhos, com dentes escurecidos pela falta de higiene, começou a falar em voz alta num incómodo monólogo. O seu hálito fez afastar a senhora idosa sentada ao seu lado, e a criança da frente levantou-se, assustada, procurando protecção no colo da mãe que a enxotou por já ser demasiado grande para colo, dando-lhe no entanto a mão, e a criança colou-se à mãe, cerrando com força os olhos, como se fechando-os desaparecesse o homem e a ameaça da sua voz.

- Ora bem, está-se aproximar a minha saída, ah pois é !– e levantou-se dirigindo-se para a porta, passando ao lado do banco de Mariana.

Enquanto se dirigia para a porta tirou um cigarro e colocou-o no canto da boca e continuou a falar com a mesma gravidade, indiferente ao cigarro, como se sempre ali tivesse estado e fizesse parte daquela boca, prolongamento dos lábios.

O barulho da prata, tão familiar, chamou a atenção de Mariana, que virou a cabeça na direcção do barulho, e os seus olho cruzaram-se com os do homem.

O homem olhou para ela e reconheceu-a. Voltou atrás.
- Ora então cá estás tu outra vez, hã! - Mariana baixou o olhar. 
- Hoje não pareces a pantera cor de rosa, como ontem, toda de rosinha.
A porta abriu-se, mas ele não saiu como tencionara. E continuou  a dirigir-se-lhe.

Ela olhou pela janela como se estivesse apreciar a paisagem, manteve-se assim alguns instantes até que a monotonia escura do túnel a cansou e, pegando no telefone, escreveu uma mensagem para o seu marido: “a passar a a Alameda», sabendo qeu o marido, imerso na azáfama da sua vida de negócios não poderia lê-la.

- És toda gira;
Os passageiros começavam a manifestar mal estar, desdobrando-se em sussurros e expressões de tédio, sem no entanto intervirem.
Uma rapariga morena colocou a mão na perna de Mariana, que estava sentada no mesmo banco. O gesto de intimidade sobressaltou-a.
Sem que pudesse recompor-se do espanto, a rapariga atirou-lhe, de modo a que fosse audível para o sedutor:
- A esta hora já os nossos maridos devem estar impacientes à nossa espera na saída do metro.
- Como?! - perguntou Mariana, perplexa. 
- Então não combinámos que nos viriam buscar ao metro para irmos juntos a casa do Francisco? - Só aí percebeu o gesto e a tábua de salvação que lhe lançava a jovem.
- Tens razão – colaborou - que maçada, ter de ir com esta saia suja – e deu uma gargalhada satisfeita por ter conseguido acompanhar a simulação.
O rapaz já não olhou. Uma voz feminina anunciou "Roma" e, momentos depois, o sinal sonoro confirmou a chegada. O cigarro apressou-se a sair levando consigo o rapaz e desapareceu por entre a turba.
- Obrigada! - disse Mariana - e não disse mais.
Mas a rapariga morena da frente disse: - Se o palerma continuasse, saía comigo na minha estação, onde o meu namorado me aguarda e havíamos de garantir que chegava a casa sem mais assédio.

E riram-se ambas como velhas amigas. 

- Até à próxima – despediu-se a miúda morena, antecipando a alegria de um abraço.
- Obrigada – repetiu de novo Mariana, deixando que a vontade de fumar a invadisse de novo.

Mariana chegou a casa. Arrumou a cama, deu um jeito ao quarto, fez o jantar. Mastigou pastilhas até que lhe doessem os maxilares. Telefonou ao marido para ouvir a sua voz,  mas do outro lado do telefone, apenas a constância do sinal de chamada.

Uns minutos depois, um telefonema desculpava-se da impossibilidade de atender devido a uma reunião,  que já estava a caminho de casa, que a queria linda à sua espera e que a amava.

Fernando chegou a casa, limpou no tapete da entrada os sapatos carregados do pó do dia, deu um enorme abraço a Mariana, perguntou-lhe pelos progressos na sua Odisseia anti-tabágica, disse-lhe como a admirava e perguntou-lhe como lhe correra o dia.

Mariana contou, então, o episódio do metro, de como um louco teimara em a expor dirigindo-se-lhe por tu como se a conhecesse e fazendo apreciações desagradáveis. E que chegara a ter medo. E contou da desconhecida que se lhe tinha dirigido e lhe tinha dito … Neste momento Fernando deixou de ouvir a mulher, petrificado. Tolhia-o a ironia do destino. e enquanto a abraçava, relembrou a história que já conhecia, por a ter ouvido uns momentos antes, num apartamento aconchegante, nas conversas tranquilas dos amantes depois de se entregarem.