sábado, 8 de setembro de 2012

Netos




Custa acreditar, olhando-me no reflexo do lago - há muito que bani os espelhos lá de casa - que já fui menina. Menina dessas que andam de cabelo preso balançando ao ritmo dos saltinhos bamboleantes de lacheira na mão a caminho da escola, menina de risinhos tímidos e cochicantes, ruborescendo com os olhares dóceis dos meninos.

Nesse tempo em que fui menina como os outros que da minha idade foram - e já se foram tantos -  eu habitava locais mágicos, cuja porta se abria com a voz delicada e lenta do meu avô e acreditava viver no mundo da magia.

Esse eram os dias dos milagres. E eu não sabia. 

Candidamente desconhecia a existência dos sonhos a impulsionar a vida. A vida eram os sonhos e sonhos era o nome da vida, um nome que não era preciso e por isso ninguém mo tinha ensinado. E eu não o sabia.

Eu vivia nas histórias do meu avô e nas recordações ténues de que me lembrava, ao acordar e que a minha cabeça vadia, livre e irreverente inventava durante a noite por conta própria, para se vingar da minha quietude contemplativa e obediência diurnas.  

Depois, aos poucos, nomearam-me as certezas que tinha do mundo: sonhos!
Todas as certezas se esvaneceram quando lhes deram um nome e lembro-me de pensar o que fazer com os cacos e de como abriria a porta, ou se ela se abriria de novo para mim.

Lembro-me. Foi no dia em que ficou vazia a cadeira do avô e a sua presença passou a assentar em todos os objectos em que tocara, e os nossos dedos passaram a demorar-se mais sobre eles.

Foi no dia em que no seu lugar à mesa não havia comprimidos coloridos com nomes bizarros que o avô inventava e de que se despedia, antes de os engolir, depois de lhes fazer recomendações quanto ao trajecto, ou os aconselhar quanto ao que dizer  aos que já lá estavam quando os encontrasse. Fazia-o porque nos divertia e pedia-nos conselhos sobre os conselhos que devia dar. E nós, por vezes, não concordávamos e o avô encontrava soluções em que mesmo o vencido não sentia ter ficado a perder.

Sonhos, Era então esse um nome de quimeras e não da vida. A meta, não o caminho. O infinito, não a porta aberta pela voz do meu avô. 

Cresci retrocedendo, aos poucos, ao tempo inicial, mas evidente. 

Sou de novo uma menina a saltitar por entre promessas de risos, quando abro a porta, agora, eu. 
- Schhhh! - Faz-se silêncio! Os olhos ganham brilho e as asas nascem-lhes no dorso -Vamos entrar  na terra dos sonhos, digo!

Dos sonhos! Abro-lhes a porta das histórias onde viajo com eles no tempo dos milagres. Aqui estou eu, por força da regeneração, adicta, de novo desta condição sonhante, lançando-me para a meta inatingível. Por isso, se eu morrer pelo caminho desta jornada, não lamentem, nem me estranhem.

Será, seguramente, de exaustão onírica.

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