sexta-feira, 31 de agosto de 2012
lusco-fusco
Ali fiquei, entretida olhando o efeito do tempo sobre as coisas.
A borboleta vadiando entre mesas de esplanada como se fossem flores; o pombo debicando migalhas perdidas; os namorados, balançando os risos num corpo que o abraço fundiu; as meninas adolescentes, passeando nas mini-saias e decotes promessas que não pretendem cumprir e que o inverno há-de abafar.
A minha caneta, cumprindo-se sobre o papel; o minúsculo aparo tornando-se céu no reflexo da luz solar, num arco-íris, este apêndice de mim pelo qual escorrem letras; por instantes faz-se silêncio, nem conversas animadas de turistas, nem cantos de miúdos rua abaixo, nem Amália ao longe, na carrinha que teima em alimentar o fado. A palavra inventando-se e eu.
No final, quando a premência das horas me acorda, peço licença à escrita, para que me abra a porta da realidade. Levanto-me com a lentidão dos que acordam aos poucos; esvaiu-se o sol no lusco-fusco de todas as paixões, de todas as razões, de todos os medos.
Rasgo o papel. Guardo a caneta. Pergunto pela conta. Pago.
Rumo ao covil onde me habito!
domingo, 26 de agosto de 2012
silêncios ...
«Lorsque le silence s 'est établi dans une maison, l'en faire sortir est difficile; plus une chose est importante, plus il semble qu'on veuille la taire. [...] tout silence n'est fait que de paroles qu'on n'a pas dites. »
Marguerite Yourcenar
Alexis, ou le Traité du vain combat
Marguerite Yourcenar
Alexis, ou le Traité du vain combat
quarta-feira, 22 de agosto de 2012
Dietas e sopas da mãe
Devia ser proibido, a quem faz dieta, ir passar férias a casa da mãe!
É que a mãe cozinha bem. A mãe cozinha sempre melhor do que nós e cozinha melhor do que qualquer chef cuja maravilhosa paparoca tenhamos algum dia provado. Vemo-nos a mãos com muito mais trabalho do que em nossa casa, porque a família é grande e parece agigantar-se nas férias, quando todos se reunem em torno da mesa familiar. Mas a isto se resume a nossa adultez: ao trabalho de pôr e levantar a mesa, lavar louça e repô-la no descanso das prateleiras enquanto aguarda a hora de saltar de novo para cima da toalha alva que a sobrinhada se encarrega de sujar ao fim de dois minutos com alimentos que não vencem a imperícia dos mais novos, ou o experimentalismo dos mais velhos.
Quando pegamos no talher, para comer, regressamos à infância. Tudo nos sabe como quando éramos meninos e até a insuportável sopa infantil nos sabe ao mais divino manjar. Tudo seria de facto divino, não fosse a circunstância de a mãe regressar connosco à infância, invectivando-nos a comer, porque a nossa vida é muito cansativa, porque se não comermos bem não conseguiremos aguentá-la, porque estás magrinha - e nem a constatação de que ter-se sessenta quilos e pouco mais de metro e meio as dissuade de utilizar este argumento. Algo me diz que, embora crescendo, nós e elas, as mães continuam com uma cegueira selectiva que as impede de ver até as evidências.
Tomei uma medida radical: porque a balança não obedece ao desejo a que qualquer homem gostaria de ouvir: "prefiro que me mintas !", peguei nela com raiva, rodei o botão estabilizador de peso e baixei dez quilos à bitola. Peso agora cinquenta quilos! Maravilhoso engano! Fiquei feliz!
Porém, dura pouco a alegria e quando as calças, apertadas, me relembram a mentira e a realidade que fiz por não perceber, caio em desespero, menos pela mentira do que pela conivência de nelas ter consentido!
Nunca o espartilho da alface me soube tão bem !!!
terça-feira, 21 de agosto de 2012
A despedida de José de Alemparte, de Paulo Bandeira Faria
Uma criança de oito anos a quem o avô Xosé oferece um computador a troco do cumprimento da promessa de escrever todos os dias e que, para cumprir a tarefa, vai descrevendo o seu dia-a-dia e a leitura da vida dos que com ele convivem, numa leitura peculiar de quem vê o mundo despojado de erros, mas os intui e, de certo modo, os compreende e compreende a fragilidade escondida dos adultos «Se alguma coisa sei ao final de 3000 dias feitos é qeu não podemos deixar os adultos sozinhos, senão perdem-se» ;
Uma mulher atormentada por um passado que assombra de segredos o seu casamento que não a satisfaz; são estes os narradores da história de um grupo cuja vida se conjuga muito para além do que pudesse prever-se, e da História da Espanha do franquismo, dos traumas que deixou inscritos nas almas dos que a viveram ou lhe sentiram os efeitos distantes, mas muito presentes.
São estes os narradores de um livro muito belo - povoado de pessoas vergadas à cobardia dos seus sentimentos ou à coragem dos seus actos, sendo, uma e outros, parcelas de um mesmo sentimento - que conjuga narrativas de uma tristeza profunda pelo que a guerra, o medo e a incapacidade de esquecer provocam, com momentos de uma ternura infinita; parágrafos que apetece reler, reler, reler...
quinta-feira, 9 de agosto de 2012
Como se domina uma multidão ...
Em 1947, ensinava-se assim na escola do Exército. Os comandantes sempre souberam como lidar com multidões e suspeito que as multidões, pormenor ou outro de diferenciação contingente da época, se pautam sempre pelas mesmas características:
«OS CARACTERES NORMAIS DAS MULTIDÕES são:
- Grande impulsividade;
- Grande versatilidade de opiniões, acentuadamente de características femininas, principalmente as latinas [sic!];
- Grande predisposição para a sugestibilidade e «credulidade»;
- Exagêro e simplismo daqs multidões, Para as multidões não há que explicar,; há sim que afirmar com violência, exagerar, afirmar, repetir e não demonstrar;
- Autoritarismo e intolerância das multidões. Os homens tiranos são os mais respeitados pelas multidões;
- O conservantismo, antagònicamente aos seus instintos revolucionários aparentes; as multidões são profundamente conservadoras;
- Moralidade baixa, pouco respeito pelas convenções sociais exteriores. POr vezes, a moralidade é alta, no sentido do cumprimento de actos de beleza moral rara, superiores até aos do homem isolado;
- Alto poder de imaginação, visto a multidão pensar por imagens; Napoleão, contando com a imaginação das multidões, disse um dia num Conselho de Estado: « Foi fazendo-me católico que acabei com a guerra de Vendêa, faendo-me mussulmano que acabei com a guerra e me estabeleci no Egito, fazendo-me ultramontano que conquistei os padres na Itália. Se governasse um povo judeu levantaria de novo o templo de Salomão» [...]
segunda-feira, 6 de agosto de 2012
Ciclo de vida da discórdia
«A discórdia almoça com a abundância,
janta com a pobreza,
ceia com a miséria,
e dorme com a morte».
Benjamin Franklin
sábado, 4 de agosto de 2012
Nevermore ...
Morte!
Uma das palavras menos comerciais, mais evitadas, mais sofridas e mais silenciosamente proferidas, como que para evitar que a senhora da gadanha se lembre de quem dela fala com tal discrição (como se uma alegoria pudesse convocar-se pela verbalização do seu nome).
Em surdina, em pranto, em espanto ou como constatação do que se sabia inevitável e inexorável, a morte representa o que de mais finito existe no ser humano, o confronto com a sua existência breve, a porta conhecida de um ignoto mundo que apenas cativa aventureiros temerários, ou descontentes da vida. O rio onde Hades espera o viajante, com barca sempre pronta, quantas vezes se revolta pretendendo engolir o marinheiro incauto.E quantas vezes o moribundo se faz de novo à vida, renascido por uma qualquer promessa de bonança.
Na arte, a morte é um tema recorrente, quer como personagem principal (O Sétimo Selo, de Bergman, ceifeira negociando a colheita pelo resultado de um jogo de xadrez), como fantasma pairando sobre a vida da personagem (D. Giovani, de Mozart, ensombrando a personagem como, dizem, o próprio pai de Mozart lhe ensombrava a vivência), ou como símbolo omnipresente como impulso de renascimento constante (de que é exemplo a obra de Frida Khalo). Morte, cenário para a narrativa do absurdo da existência humana (O Estrangeiro, de Camus), ou vertida em versos invocativos de um desfecho salvífico que elimine o "mal de vivre", o sofrimento da existência, a vertigem desejada (Mário de Sá Carneiro, Florbela Espanca).
Porém, é em The Raven, de Edgar Allan Poe - publicado em 1845 merecendo imediato reconhecimento pelos leitores e pela crítica), que o dramatismo e o desalento da finitude se condensa numa só palavra, proferida por um corvo: NEVERMORE!
O Corvo (tradução de Fernando Pessoa)
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Nota interessante 1 - O facto de a deusa grega escolhida por Poe para poleiro do corvo ser Pallas, deusa da sabedoria, das artes e da Justiça.
Nota interessante 2 - O facto de os vários tradutores portugueses terem preferido chamar-lhe Atena e não Pallas. O nome é, de resto, Pallas Atena.
REQUIEM [EM MEMÓRIA]
Eis-me aqui envolto em letargia reconstruindo
em mente, como que num sonho,
risos e lições e abraços e missivas
transcritas em código de sentimentos
(lembranças dos nossos entendimentos
que ninguém mais alcança)
E nestes olhos meus aparentando calma,
nesta presença de quem se encontra
ausente, fervilham memórias em turbilhão aflito
(memórias que urge, num incontido
grito, apaziguar lembrando-as em torrente)
Quem sabe quanto tempo durará
a hora, o instante deste pesadelo.
O homem de ontem, hoje evanescente
feto emergente da saudade eu aqui estou
(vestígio da criança que já fui pendente da tua mão,
na tentativa de acertar em vão, no teu o meu miúdo passo)
O casulo tecido por quem sofre
connosco o mesmo sofrimento, neste momento
é nada
É inevitável ser-se só!
Amadurecer não foi vantagem, não foi vitória
alguma ter crescido, para me sentir assim,
de novo infante aflito a precisar de ti!
Lídia POnti
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