quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

CINE PRIVADO

Não sabes como te aguardo ansioso!

Estou aqui preso, dia após dia, contando o tempo por entre os dramas das novelas e os golos falhados dos clubes da primeira divisão. Preso! Preso é o termo. É o sentimento. E é real!

Bem sei que ainda existe mundo deslizante sob os meus pés - a custo, é certo, e agarrado a uma bengala que teima em não me obedecer - e que, apesar de tudo, ainda me sento no à mesa para comer, ao contrário do meu vizinho de quarto, que já perdeu a memória da cor das paredes do refeitório.

Quando regresso das refeições, com o rigor das badaladas das horas mortas e das novelas das cinco, sento-me na sua cama e, enquanto ele tenta deglutir os restos da fruta cozida que se eternizam na sua boca, descrevo-lhe com pormenores as conversas, os cheiros, os pratos que antes de almoço se perfilam  sobre a mesa como exército submisso às mãos dos funcionários e, depois dele, jazem como mártires destroçados numa qualquer guerra inglória, desalinhados, sujos, sangrando nódoas de comida pelos trajes dos comensais.

Só agora noto que me esqueci de lhe contar das novas toalhas da mesa. Mas ser-lhe-ia indiferente, porque não recorda como eram antes, quando ele ainda se mexia e lançava piropos compulsivamente quando se cruzava com uma mulher, como se exteriorizasse uma alegria que precisava recolher para si, para se lembrar que continuava vivo.

Deixo-o por instantes parado a olhar o tecto. Não sei se me ouve, não sei se gosta que lhe fale, não sei sequer se me percebe.

Depois há os outros.
No resto do dia sento-me na sala. Olho-os, falo-lhes, respiro.

Por vezes relato-lhes histórias de outros tempos.

Mas são fotografias as que conto! Páginas de revista. Estáticas, inertes, já baças de tanto manuseio.
Já não contabilizo as vezes que as lembrei …Mas quando chegas, estou de novo numa sala de cinema onde, tu e eu, produtores de um filme realizado há tanto tempo, ajeitamos a cor e a luz e o som e os cheiros a cada cena. Ocorre que cortemos algumas delas, sobretudo as dolorosas que não servem o modo como queremos fixar a nossa história. E é como se as fotografias, aqueles velhos recortes de revista, se animassem.

Conto-lhes histórias como a daquele dia da viagem que havia de ter sido a nossa primeira à capital.
 
Pormenorizadamente, descrevo-lhes a expectativa da mãe, as conversas inflamadas com as vizinhas que redobravam a afabilidade para não deixar transparecer um mal contida inveja. Conto-lhes como isso nos divertia, como a mãe mandou que nos fizessem uns fatinhos lindos, porque, afinal, uma visita a Lisboa é uma visita à capital, ao local mais importante do país, onde há ministros e grandes monumentos e ruas largas e a luz ilumina os caminhos noite adentro.

O pai pediu que lhe trocassem dois dias de férias na fábrica, e a muito custo anuíram, sempre de cara cerrada, depois de o fazerem prometer que redobraria esforços depois de regressado, perplexos pelo facto de alguém sem estudos querer passar a fronteira das estremas do seu mínimo torrão, dos seus nabos, das couves e dos recos.

Conto-lhes toda a minha vida, para não a esquecer.

Eles deixam-se embalar as minhas histórias que podiam ser as suas, recostados nos sofás com que se confundem e de onde se levantarão à hora de dormir.

Falo-lhes do riso feliz no carro, imaginado o Tejo, das cantigas que nos animaram a viagem até que me lembrei que precisava de urinar.

Pacientemente, o pai encostou o carro. Tu levantaste-te do meu colo para que eu pudesse sair e eu lá fui a correr enquanto abria o fecho, não fosse a natureza ser mais rápida do que eu.

Para me furtar aos olhares curiosos das manas, refugiei-me junto a umas sebes, na beira-rio, quieto, abandonado ao gozo de me ver aliviado daquela aflição. Foi então que, junto à margem, uma amora se insinuou irresistivelmente por entre as silvas, qual sereia obstinada perante Ulisses.

E o sonho de conhecer a capital findou-se no emaranhado das minhas carnes nuas e frias, embrulhadas no casaco da mãe, a tiritar de frio, com a frustração de um regresso intempestivo a casa e a dor de vos estragar o dia. As minhas roupas molhadas presas na janela, ondulando ao vento por fora do carro, como uma bandeira de rendição.

De repente, uma luz surge no retrato, ouvem-se sons, sentem-se cheiros… como o do rosmaninho que ladeava a estrada nessa manhã em que vos desfiz os sonhos de, com vaidade, poderem, com a vossa melhor letra, a mais bonita, muito carregada, escrever  «Nestas férias fui à capital» para iniciar com brilho a primeira frase da redacção que a senhora professora nos mandara fazer sobre o que fizemos nas férias.

Lembro-me da cor da amora, a brilhar para mim, jogando às escondidas com os ramos e obrigando-me a inclinar-me cada vez mais para a alcançar.

Consigo mesmo ouvir o som do meu grito. Fino. Menineiro. Estridente. Surpreso e curto adivinhando já o desfecho. O súbito embate com o espelho límpido onde se passeavam insectos e a frieza da água entrando-me nos ossos como um castigo prévio pelos vossos olhos tristes, decepcionados, silenciosos para não engrandecerem mais a reprovação do pai, já a pensar no trabalho suplementar que teria na fábrica, por um dia que não chegou a ser, e que estava perdido.

Conto-lhes, mas nenhum deles sabe como cheira a manhã na nossa terra, nem como chilreavam os pássaros nessa manhã, nem saberiam a minha voz naquele grito! E eu não posso descrever-lhes tudo, porque não compreenderiam como podíamos rir-nos do assobio do pai ao chegar a casa, nem que o beijo da mãe nos sarasse as feridas.

Mas contigo tudo é diferente! Tu não precisas de viver a história para a conheceres como se a tivesses vivido. Tu povoavas as  minhas histórias como actor principal e quando não participavas sabias ler-me o olhar quando nos víamos e entendias o que te contava como se fosse tua a vida. Porque tu conhecias o realizador e o actor e o editor e o produtor que eu era, e sabias que só podia ser assim qualquer que fosse o filme que te contasse.

 
Quando chegas entras nas memórias que ficam dormentes durante a semana, à espera do teu abraço que as desperte, para me resgatar do que vou perdendo, de mim, nos dias solitários à tua espera.
 

E é por isso, irmão, que ainda vou!