sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Hum, hum; sim, sim; pois!


René Magritte


Devias dizer em frente ao espelho, todos os dias, que vais mudar, sei lá, ser mais corajoso, mais firme - e eu a perguntar-me porque tenho de regressar a casa a cada fim de dia,  e a demorar-me cada vez mais tempo para chegar, por causa do trabalho, sabes, malditos clientes que que arranjam sempre defeitos nos projectos, para me alargar o tempo numa qualquer esplanada de café, ou num solitário banco frente ao rio, ali imóvel, sem pressas, sem constrangimentos na sua serenidade húmida e apelativa, ou no carro, a olhar a luz que me chega da janela da sala e a pensar como seria bom vê-la fechada e ser eu a abri-la quando chegasse a casa ao fim do dia.

Ouço-te repetir que tenho de mudar, que tenho de fazer frente ao patrão que me mata de trabalho e que sou um frouxo e que se fosse outro já tinha sido aumentado e se, e se, e se. E repito o que sabes, que sou um velho aos 50 anos e já ninguém muda, que sou o mesmo de quando casámos, apenas mais cansado das tuas recriminações, dos azedumes.

Insistes que não, que mudam, que então não mudou o Manuel, que se tornou um homem tão simpático, vê tu, que até já deixou o semblante sombrio e se tornou um exemplo de solicitude? E eu a perguntar-te se queres que mude pelas mesmas razões, depois de tanto sofrimento e de trazer no bolso a incerteza do tempo em que lhe será permitido o sorriso.

Memórias de crianças a correrem pela praia e nós com eles sem medo do ridículo, filmes vividos sem pressa, porque nem o pó, nem os gritos do vizinho acompanhando a música, nem a louça acumulada na cozinha ultrapassavam a barreira do sofá.  E se é para deixares a cozinha assim mais vale que não ajudes, e eu a ajudar e a tentar ser o que tu queres para que o silêncio doce regresse a esta casa a que já não chamo lar, sem conseguir ser esse, nem ser eu.

Vê o exemplo que dás aos miúdos, a falar com a boca cheia, e os miúdos (que são miúdos apenas na tua incapacidade de os veres crescer e a quem com gosto trocarias ainda fraldas e irias buscar à escola se não fosse ridículo fazê-lo a quem está já no secundário, com a dependência de quem não se liberta da necessidade que os outros têm de si, para se sentir amada) a olhar-te com olhos grandes a suplicar-te que pares e tu a veres nesses olhos encorajamento e eu a sorrir-lhes agradecendo e calando, calando cada vez mais, calando-me, calando o que sou para passar a responder-te - hum, hum; sim, sim; pois!, a cada inflexão interrogativa da tua voz em longos monólogos de questões alheias que não me dizem nada.

Mas como é possível que não te lembres se te contei tudo com tanto pormenor, és sempre o mesmo, nunca prestas atenção ao que te digo - e os amigos a pensarem que tenho memória de filigrana para o que me interessa e a ouvirem-te com os mesmos ouvidos moucos, pensando no futebol; na política; em como está cada vez mais linda a filha do José que era tão feinha em pequena, coitada; no automóvel que está por lavar; na crise;  em como pagar as contas ao fim do mês; na mini-saia que pára  provocadoramente junto à  mesa; no empregado que rodopia; no trabalho do dia seguinte à espera sobre a secretária e sei lá o quê mais. E eles hum hum, sim, sim, pois!

Os meus braços a querem fechar-se em torno de ti, a quererem abraçar-te para te dizer quanto lamento que não te aninhes em mim como antigamente, silenciosamente, dolente e sequiosamente como se dependesse deste gesto a força do amanhã e tu a dizeres deixa-te disso, já não temos idade para essas coisas de adolescentes.

E eu a ausentar-se sem que sintas, e a acreditares que ainda estou ali, sentado naquele lugar da mesa, deitado do lado esquerdo da cama, sem te tocar, porque te faço calor, sentado a conduzir-te a cada manhã para o emprego.

Escrevo-te esta carta para te dizer que não contes comigo hoje para jantar, nem para dormir, nem para te desarrumar a cozinha ao preparar o jantar, nem para te aborrecer deixando desalinhado o bibelot tão lindo que tem de estar milimetricamente disposto junto do Sto António da mesa de cabeceira. 

Deixo-te, pendurado no cabide da entrada, um saco cheio de hum, hum, sim, sim, pois!, para o caso de sentires a minha falta. 

Agora vou! Dou-te razão. Nunca é tarde, afinal, para mudar.

Lídia Ponti

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