sexta-feira, 5 de outubro de 2012

A silenciosa sombra dos sonhadores [3]


III.
Mariana gostava muito do avô, da sua companhia. Sentia-se protegida quando deitava a cabeça no seu regaço e sentia aquela mão doce deslizando como uma pluma pelos seus louros cabelos, enquanto lhe repetia histórias de quando era menino como ela e lhe perguntava no fim, olhos olhando o vazio, lembras-te?, e ela que sim, que se lembrava dos tempos em que não tinha vivido, como tributo à vida infante do pai de sua mãe. Era um bom ouvinte, o avô. Sorria sempre quando ela lhe falava do senhor da estátua e das conversas que com ele travava logo de manhã quando o ranger do abrir da sua janela o acordava, e Mariana tinha a certeza de que ele não se importava que ela acreditasse nas fadas, ou em duendes, porque não lhe respondia, como os outros, com um sorrisinho complacente: “Ora, menina, ora! Fantasias de criança”!  
Pelo contrário, não gostava de D. Gregória. Sempre vestida de negro, de boca crispada, mão escondidas dentro de um abafo fosse de Verão ou Inverno e um olhar sombrio que não merecia o esbanjamento de qualquer adjectivo agradável. Mariana temia que a sua casa fosse decorada a trovões e povoada por seres mágicos e maléficos e amedrontava-a imaginar cenas terríveis que seguramente se passariam por detrás de algumas janelas que permaneciam fechadas meses a a fio. 
Embora frequentemente simulasse súbitas dores de barriga, cansaços que a obrigavam a ficar na cama, ou o chamamento do avô, a precisar de si, nunca a mãe a dispensava de ficar a seu lado a receber D. Gregória com um “Bom dia, como está a senhora?”, enquanto pegava na saia e flectia ligeiramente os joelhos, a perna direita colocada levemente em frente da esquerda, como num passo de ballet. Não se lembra de ter alguma vez ouvido a resposta ao seu cumprimento. Não porque não fosse dita, mas porque de imediato mergulhava naquele alheamento silencioso que os meninos bem-comportados devem fazer, ao qual acrescia um esforço para não mostrar desagrado com a gesto de D. Gregória esfregando-lhe a cabeça com a mão, numa tentativa de carícia que, de tão semanalmente idêntica, lhe parecia sempre a mesma, como um livro a que não fosse possível mudar a página.
A única excepção à regra à tão previsível vida da fidalga e que, por esse motivo, excitava a curiosidade da população, era a reunião de chá que tomava, às sextas-feiras, com as três amigas que restavam do grupo da meninice, aquelas a quem, segundo as mesmas, Deus concedera uma moratória para redimir os seus pecados, obrigando-as a conviver com os destemperos da modernidade. A curiosidade não estava no que faziam durante o encontro. O que faziam sabia-o a população muito bem, levado de boca a orelha, em sussuro, depois de contado em segredo - só a ti, em quem confio! - pelas empregadas-de-fora da casa. O que surpreendia era a alietoriedade com que se reuniam, ora na casa de uma, ora de outra, sem aparente critério, como se D. Gregória quisesse, deste modo, rir-se dos que pensavam saber da sua vida.
O resto destes dias passava-os em casa. Ninguém sabe a fazer o quê, nem isso interessa a esta história.
Embora devota e frequentando matinalmente a Igreja, Mariana ouvira-a um dia confessar à mãe, para espanto desta, que rezava prudentemente a todos os deuses conhecidos e desconhecidos, não fosse o Pai Santíssimo pertencer, afinal, a outro credo que não aquele em que fora educada. Este receio de haver mais do que um deus tinha-lhe ficado da leitura de um livro que mão ancestral escondera entre papéis velhos de seu pai. Um livro sobre religiões que tinha lido sofregamente para a levar a concluir que, afinal, poucas diferenças podiam existir entre quem pregava o mesmo. Para se redimir da heresia, confessava-se todos os sábados, prometendo arrepiar caminho e regressar ao rebanho de onde se tresmalhara e ao qual tentava regressar, não sem reservas.
(continua)

Lídia Ponti 

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

A silenciosa sombra dos sonhadores [2]

Pintura: Claude Verline
II. 
D. Gregória era uma senhora fidalga, de poucas palavras, rigorosa nos costumes e respeitadora dos preceitos sociais como se deles dependesse a ordem do mundo. Mais por respeito à memória de seu pai - um velho e autoritário General cuja memória continuava a pairar na aldeia como uma sombra - do que por convicção, cumpria escrupulosamente uma agenda pública, sem falhas, sem atrasos, sem desvios.
Por essa razão, embora recatada, todos sabiam o dia-a-dia da fidalga e os seus actos, ritualizados, serviam de relógio e calendário a toda a aldeia.
Despacha-te, rapaz, que se faz tarde para iniciares a jorna, não vês que já D. Gregória regressa da Igreja?, insistia D. Gertrudes com o preguiçoso filho, a quem nem a fome encorajava o cultivo das terras. - Neste momento estará D. Gregória a ler o seu missal sob o alpendre de lilases - imaginava enlevado D. Joaquim, a quem os oitenta anos não impediam a esperança de poder vir a merecer, um dia, um olhar doce daquela que amava há tantos anos. - Cruz, credo, valha-me Deus Nosso Senhor, se a D. Gregória vai de visita às Fonseca é dia de ir à estação buscar a carta do meu filho e já se não me alembrava! - lamentava-se uma mãe a quem o apelo da cidade levara o único varão.
De tão pontual, minutos antes de entrar na mercearia, já D. Raúl se colocava à porta para a receber, a cada quarta-feira. E se uma vez se atrasou parcos minutos, logo se gerou um burburinho de que talvez estivesse enferma,- padecendo das doenças da idade, coitada, que algum dia esses achaques da idade haviam de se lembrar dela - mas logo apareceu vigorosa no seu porte muito hirto, desfiando o rol das suas compras, que uma criada pressurosa colocava em cestos.
As segundas-feiras reservava-as para ajudar a ilustrar as meninas Fonseca, que ficaram órfãs de uma mãe ainda na flor da idade, de quem sabiam apenas ser bonita e amável e chamar-se Deolinda. Escolhera para tal tarefa as manhãs, por ser este o período em que, segundo as suas raras palavras, as cabecinhas estão mais aptas a acolher os ensinamentos. Trabalho vão, uma vez que o único conhecimento que interessava às jovens era a lista dos rapazes casadoiros, em quem pensavam enquanto debitavam de cor a tabuada, ou bordavam um entremeio de lençol. 
Tinha um dom especial para ensinar quase sem proferir palavras, a fidalga, o que motivou um convite das senhoras da Igreja para, às terças-feiras, pela tardinha, tornar prendadas as moças solteiras do povo a quem ensinava a cerzir tecidos, colocar botões e a tratar do marido e da casa. 
De todo o calendário de D. Gregória, o único a que Mariana, mergulhada na sua ocupação de menina de 7 anos, não era indiferente, eram as quintas-feiras, quando a recebia em sua casa, à qual a bondosa senhora se deslocava, por cortesia, para saber junto de D. Francisca da saúde do senhor seu pai, cujo discernimento Deus levara, há alguns anos, deixando o corpo a marcar uma presença doce, fazendo companhia às memórias do que fora.

(continua) 


Lídia Ponti