.
O Outono é a estação do ano mais inverosímil.
Gente de manga curta, para quem ainda é Verão, cruza-se com gente encasacada até aos olhos, trajando botifarras até à cintura, reverberando contra o inverno, que ainda não é, mas parece.
Este é o mês em que a balança é rainha. Ou talvez não: depende! Há quem guarde a balança num sítio inatingível para evitar depressões, mas também conheço quem a coloque previdentemente na entrada da cozinha (ó, com licença, cuidado para não tropeçar), para evitar tentações.
Mas por que é que tudo o que é fruto de Outono, engorda?
Ei! Não valem explicações científicas do género "é porque o corpo precisa de ganhar gorduras para aguentar o rigor do inverno, como em qualquer outro animal", porque quem ser magra quer tudo menos que lhe lembrem o seu lado animal a precisar de calorias.
Com licença, vou ali comer mais um dióspiro para aliviar a tensão e mais uma mão-cheiinha de castanhas com geropiga para aquecer a alma, e já volto!
.
.
Usar saltos altos foi uma emancipação, longe dos olhares da mãe que os proibia por serem poucos ergonómicos - coisas de mãe, já esquecida dos olhares masculinos, ou quem sabe por isso.
Tinham um defeito, os saltos altos: davam-lhe dores de costas, faziam-lhe calos nos pés e tinham o dramático inconveniente de se meterem por entre os interstícios da calçada portuguesa, partindo-se com um estalar de ossos pouco ginasticados, ficando de salto pendendo como um monco de perú.
Estes inconvenientes passaram milagrosamente quando descobriu um sapateiro alto, de tronco largo, mãos vigorosas e habilidosas, que devolviam aos sapatos o brilho de escaparate.
E se no início se limitava a levar os sapatos de salto partidos de véspera, a deixá-los para consertar e a ir buscá-los no dia seguinte, logo passou a ficar presa daquela voz e daqueles gestos que se articulavam com tal perfeição , e a desejar passar mais tempo com o sapateiro artista.
Por isso passou a forçar a quebra dos saltos a caminho do almoço - que maçada - e ela a ir consertá-los e a ficar cada vez mais tempo junto dos sapatos, ouvindo o sapateiro e vendo-o trabalhar. Os colegas estranhavam o som seco que ouviam por vezes, ao almoço, na casa-de-banho, mas nunca souberam que eram os saltos a gritar socorro, sacrificando-se a favor do amor.
No dia em que, finalmente, arranjou coragem para confessar o seu amor, levando consigo os sapatos vermelhos que lhe oferecera o primeiro marido para lhe dar coragem nas decisões difíceis da vida, foi chamada à direcção e em vez do aumento que tanto jeito lhe daria, foi dispensada, que é uma maneira ainda mais desumana de se ser despedida.
A jovem empreendeu o caminho a que os seus pés já se haviam habituado, antes de recolher a casa. Parou no parque defronte ao sapateiro. Sapato na mão olhando a pedra que sustenta o altar de Nossa Senhora dos Aflitos, que lhe faria mais falta, neste momento, do que a santa. Calçou-o de novo. Lentamente, resignadamente, com o extracto do banco na mão. Não tinha dinheiro para alimentar amores tão caros. A partir desse dia voltaram as dores e os calos, dores de navio que soçobra ao deixar para trás o cais.