Mariana gostava muito do avô, da sua companhia. Sentia-se protegida quando deitava a cabeça no seu regaço e sentia aquela mão doce deslizando como uma pluma pelos seus louros cabelos, enquanto lhe repetia histórias de quando era menino como ela e lhe perguntava no fim, olhos olhando o vazio, lembras-te?, e ela que sim, que se lembrava dos tempos em que não tinha vivido, como tributo à vida infante do pai de sua mãe. Era um bom ouvinte, o avô. Sorria sempre quando ela lhe falava do senhor da estátua e das conversas que com ele travava logo de manhã quando o ranger do abrir da sua janela o acordava, e Mariana tinha a certeza de que ele não se importava que ela acreditasse nas fadas, ou em duendes, porque não lhe respondia, como os outros, com um sorrisinho complacente: “Ora, menina, ora! Fantasias de criança”!
Pelo contrário, não gostava de D. Gregória. Sempre vestida de negro, de boca crispada, mão escondidas dentro de um abafo fosse de Verão ou Inverno e um olhar sombrio que não merecia o esbanjamento de qualquer adjectivo agradável. Mariana temia que a sua casa fosse decorada a trovões e povoada por seres mágicos e maléficos e amedrontava-a imaginar cenas terríveis que seguramente se passariam por detrás de algumas janelas que permaneciam fechadas meses a a fio.
Embora frequentemente simulasse súbitas dores de barriga, cansaços que a obrigavam a ficar na cama, ou o chamamento do avô, a precisar de si, nunca a mãe a dispensava de ficar a seu lado a receber D. Gregória com um “Bom dia, como está a senhora?”, enquanto pegava na saia e flectia ligeiramente os joelhos, a perna direita colocada levemente em frente da esquerda, como num passo de ballet. Não se lembra de ter alguma vez ouvido a resposta ao seu cumprimento. Não porque não fosse dita, mas porque de imediato mergulhava naquele alheamento silencioso que os meninos bem-comportados devem fazer, ao qual acrescia um esforço para não mostrar desagrado com a gesto de D. Gregória esfregando-lhe a cabeça com a mão, numa tentativa de carícia que, de tão semanalmente idêntica, lhe parecia sempre a mesma, como um livro a que não fosse possível mudar a página.
A única excepção à regra à tão previsível vida da fidalga e que, por esse motivo, excitava a curiosidade da população, era a reunião de chá que tomava, às sextas-feiras, com as três amigas que restavam do grupo da meninice, aquelas a quem, segundo as mesmas, Deus concedera uma moratória para redimir os seus pecados, obrigando-as a conviver com os destemperos da modernidade. A curiosidade não estava no que faziam durante o encontro. O que faziam sabia-o a população muito bem, levado de boca a orelha, em sussuro, depois de contado em segredo - só a ti, em quem confio! - pelas empregadas-de-fora da casa. O que surpreendia era a alietoriedade com que se reuniam, ora na casa de uma, ora de outra, sem aparente critério, como se D. Gregória quisesse, deste modo, rir-se dos que pensavam saber da sua vida.
O resto destes dias passava-os em casa. Ninguém sabe a fazer o quê, nem isso interessa a esta história.
Embora devota e frequentando matinalmente a Igreja, Mariana ouvira-a um dia confessar à mãe, para espanto desta, que rezava prudentemente a todos os deuses conhecidos e desconhecidos, não fosse o Pai Santíssimo pertencer, afinal, a outro credo que não aquele em que fora educada. Este receio de haver mais do que um deus tinha-lhe ficado da leitura de um livro que mão ancestral escondera entre papéis velhos de seu pai. Um livro sobre religiões que tinha lido sofregamente para a levar a concluir que, afinal, poucas diferenças podiam existir entre quem pregava o mesmo. Para se redimir da heresia, confessava-se todos os sábados, prometendo arrepiar caminho e regressar ao rebanho de onde se tresmalhara e ao qual tentava regressar, não sem reservas.
(continua)
Lídia Ponti
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