quinta-feira, 4 de outubro de 2012

A silenciosa sombra dos sonhadores [2]

Pintura: Claude Verline
II. 
D. Gregória era uma senhora fidalga, de poucas palavras, rigorosa nos costumes e respeitadora dos preceitos sociais como se deles dependesse a ordem do mundo. Mais por respeito à memória de seu pai - um velho e autoritário General cuja memória continuava a pairar na aldeia como uma sombra - do que por convicção, cumpria escrupulosamente uma agenda pública, sem falhas, sem atrasos, sem desvios.
Por essa razão, embora recatada, todos sabiam o dia-a-dia da fidalga e os seus actos, ritualizados, serviam de relógio e calendário a toda a aldeia.
Despacha-te, rapaz, que se faz tarde para iniciares a jorna, não vês que já D. Gregória regressa da Igreja?, insistia D. Gertrudes com o preguiçoso filho, a quem nem a fome encorajava o cultivo das terras. - Neste momento estará D. Gregória a ler o seu missal sob o alpendre de lilases - imaginava enlevado D. Joaquim, a quem os oitenta anos não impediam a esperança de poder vir a merecer, um dia, um olhar doce daquela que amava há tantos anos. - Cruz, credo, valha-me Deus Nosso Senhor, se a D. Gregória vai de visita às Fonseca é dia de ir à estação buscar a carta do meu filho e já se não me alembrava! - lamentava-se uma mãe a quem o apelo da cidade levara o único varão.
De tão pontual, minutos antes de entrar na mercearia, já D. Raúl se colocava à porta para a receber, a cada quarta-feira. E se uma vez se atrasou parcos minutos, logo se gerou um burburinho de que talvez estivesse enferma,- padecendo das doenças da idade, coitada, que algum dia esses achaques da idade haviam de se lembrar dela - mas logo apareceu vigorosa no seu porte muito hirto, desfiando o rol das suas compras, que uma criada pressurosa colocava em cestos.
As segundas-feiras reservava-as para ajudar a ilustrar as meninas Fonseca, que ficaram órfãs de uma mãe ainda na flor da idade, de quem sabiam apenas ser bonita e amável e chamar-se Deolinda. Escolhera para tal tarefa as manhãs, por ser este o período em que, segundo as suas raras palavras, as cabecinhas estão mais aptas a acolher os ensinamentos. Trabalho vão, uma vez que o único conhecimento que interessava às jovens era a lista dos rapazes casadoiros, em quem pensavam enquanto debitavam de cor a tabuada, ou bordavam um entremeio de lençol. 
Tinha um dom especial para ensinar quase sem proferir palavras, a fidalga, o que motivou um convite das senhoras da Igreja para, às terças-feiras, pela tardinha, tornar prendadas as moças solteiras do povo a quem ensinava a cerzir tecidos, colocar botões e a tratar do marido e da casa. 
De todo o calendário de D. Gregória, o único a que Mariana, mergulhada na sua ocupação de menina de 7 anos, não era indiferente, eram as quintas-feiras, quando a recebia em sua casa, à qual a bondosa senhora se deslocava, por cortesia, para saber junto de D. Francisca da saúde do senhor seu pai, cujo discernimento Deus levara, há alguns anos, deixando o corpo a marcar uma presença doce, fazendo companhia às memórias do que fora.

(continua) 


Lídia Ponti

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