terça-feira, 31 de julho de 2012

O TÍTERE


Soubera eu que o inferno se
moldava em vagas de silêncio
de verdades que não
ousámos admitir,

que nas margens do 
purgatório se deleitariam 
os ruídos que evitámos, guardados 
pelos confrontos adiados
e que à porta nos abririam
os braços os amanhãs
perdidos,
Teria ficado mais tempo a contemplar a fúria
e baniria do dicionário íntimo a prudência


Lídia POnti
fotografia - Ucrânia - Túnel do amor
fonte: internet

segunda-feira, 30 de julho de 2012

O problema da felicidade ...



«O problema da felicidade (…) o problema que consiste em fazer os indivíduos amar a sua escravidão».

Aldrous Huxley


domingo, 29 de julho de 2012

Se nos rompió el amor - Paquito Guzmán




Se nos rompio el amor
de tantos usarlo
de tanto de lo que paso
sin medidas
de darnos por completo a cada paso
se nos quedo en las manos un buen dia
se nos rompio el amor
de tan grandioso
jamas resisti
tanta belleza
las cosas tan hermosas duran pocos
jamas duro una flor dos primaveras
me alimente de ti por mucho tiempo
nos devoramos vivos como fieras
jamas pensamos nunca en el invierno
pero el invierno llega aunqe no quiere
una mañana gris
al abrazarnos sentimos un rugido
frio y seco
cerramos nuestros ojos
y pensamos, se nos rompio el amor
de tantos usarlo!
se nos rompio el amor
fue tanto lo que abusamos
de nuestro amor sin medidas
se nos rompio en las manos
y el viento se lo llevo
se nos rompio el amor de tanto usarlo
se nos rompio el amor
me alimente de tu amor
noche a noche dia a dia
y como todo lo bueno
se nos acabo
un buen dia
se nos rompio el amor de tanto usarlo
se nos rompio el amor
tanto y tanto lo usamos
qe nos devoramos vivos
y de amor nada quedo
y nos sorprendio el estilo
se nos rompio el amor de tanto usarlo
se nos rompio el amor
todo tan inesperado
el amor que tanto un dia
nos unio se rompio y quedo olvidado
se nos rompio el amor
nuestro amor ya se acabo
se rompio y no queda nada
pues como todo lo bueno
tarde o temprano se acaba
se nos rompio el amor de tanto usarlo
Paquito Guzmán

Poema lido aqui: Blog Modus Vivendi -  http://amata.anaroque.com/

Testamento - Yannis Ritsos




Disse: creio na poesia, no amor, na morte
e por isso mesmo, creio na imortalidade. Escrevo um verso,
escrevo o mundo, existo; existe o mundo.
Da ponta do meu dedo mínimo corre um rio.
O céu é sete vezes azul. Esta pureza
é de novo a primeira verdade, a minha última vontade.

                                           YANNIS RITSOS, Grécia, 1901-1990



Yannis Ritsos, nome maior da poesia grega contemporânea,  nascido em Monemvassia (Grécia), a1 de Maio de 1909 e falecido a 11 de Novembro de 1990, em Atenas.
Para além da literatura, destacou-se na luta armada contra a ocupação nazi da Grécia. A sua simpatia pelo partido comunista e a sua luta persistente valeram-lhe a detenção em campos de concentração, de 1948 a 1952, durante a Guerra Civil Grega e o exílio nas ilhas Giaros e Leros, de 1967 a 1970.




quinta-feira, 26 de julho de 2012

Sobre a tolerância



Tolerância significa "acto de suportar, carregar". Por isso, prefiro usar em sua vez palavras mais humanas como fraternidade, solidariedade ou alteridade -  essa difícil (in)capacidade de nos colocarmos na perspectiva do outro.

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Porém, nenhuma outra palavra, senão intolerância, exprime tão bem a insuportabilidade da diferença  para os "arrumadinhos" do mundo.
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«Os seus edifícios estão aglomerados tão apertadamente que, a não ser entre as dos comerciantes, dificilmente se achará uma rua com mais de oito pés de largura. A causa de tamanha aglomeração de homens era que não havia entre eles nenhuma religião obrigatória; e como cada qual tinha a religião que queria, por isso de todas as partes do mundo os homens mais depravados ocorriam aqui como a uma sentina, viveiro de toda a licenciosidade e imundice».
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Osberno, cruzado inglês, Carta sobre a conquista de Lisboa aso mouros
Time Out (26 de Maio de 2011, p.26)

quarta-feira, 25 de julho de 2012

BATHTUB - EZRA POUND


As a bathtub lined white porcelain,
When the hot water gives out or goes tepid,
So is the slow cooling of our chivalrous passion,
o my much praised but-not-altogether-satisfactory lady.



Como uma banheira de branca porcelana,
Onde a água quente se esvai ou fica morna,
Assim é o lento arrefecer da nossa cavalheiresca paixão,
Ó minha prezadíssima, mas não-inteiramente-satisfatória senhora.


Ezra Pound
Ezra Weston Loomis Pound. 30 de Outubro de 1885 -1 de Novembro de 1972)
Artista pluridisciplinar (músico, crítico literário, essencialmente poeta), impulsionou, com T. S. Eliot (1888-1965), Wallace Stevens (1879-1955) e William Carlos Williams (1883-1963), o movimento modernista americano, nomeadamente os movimentos Imagismo e Vorticismo.



MITAD DE LA VIDA poesía de Víctor Gaviria

Como un hombre que ha hecho tantas cosas olvidadas,
y en el futuro otras tantas que no recordará,

inculto, sin lecturas,
que sólo tuvo en casa viejos libros en desorden
nunca leídos,
y su cabeza da vueltas en un oscuro remolino
bajo la tierra,
y nunca tuvo voces, cielo abierto,
ramas sobre ramas.
Como un hombre de rosados oídos de caracol.
Lejos del mar
que a mitad de su vida oye la orden,
la obsesión.

Soñamos escribir algunos libros
pero nunca lo hicimos.
En nada se rebajan.
Hemos cantado, silbado por lo bajo
canciones ordinarias
que significaban otra cosa desconocida.
La verdad, hemos callado hace tiempo,
no sé las razones.
Busco entre mis cosas un libro que no he tenido,
busco fotos que no he guardado,
colecciono hermosos papeles que se deshacen.-



poema pedido de empréstimo a este blog :http://nosotrossomosquiensomos.blogspot.pt/

terça-feira, 24 de julho de 2012

Por sonhos breves




Bem sei!
Houve um tempo
Em que as carícias me escorriam
deslizantes, porque sorrias sempre
nos meus dedos e cintilavam pássaros 
nos beijos prometidos
Hoje, esquecidos os sorrisos 
nos meus gestos, contemplo os anéis velhos
por instantes
Para recordar os dedos já perdidos

Lídia Ponti


segunda-feira, 23 de julho de 2012

domingo, 22 de julho de 2012

sur la lecture - Proust " O prazer da leitura"



Texto de Proust sobre a leitura.
Lido, ouvido (aqui em francês ) ou em Português, um texto muito interessante!
Em Portugal, editado pela Teorema, "O prazer da Leitura". Único defeito: é curto o prazer, por ser um livro de poucas páginas, mas é um tempo de deliciosa leitura.
http://beq.ebooksgratuits.com/vents/Proust_Sur_la_lecture.pdf


terça-feira, 17 de julho de 2012

A silenciosa sombra dos sonhadores [I]



Mariana levantava-se todos os dias à mesma hora, depois do beijo com que sua mãe, D. Francisca, lhe anunciava o acordar. Abria a janela do quarto, cumprimentava com uma vénia o senhor da estátua que se erguia defronte, na praça principal da vila, e ficava alguns minutos a conversar com ele. Dizia-lhe dos sonhos que tivera,  os acontecimentos do dia anterior, a sombra da mãe, presa na recordação do marido, seu pai, o corpo do avô, na sua cadeira de rodas, das suas mãos de veludo que fechavam a porta a todas as incertezas e receios. Em troca, aquele senhor muito hirto dava-lhe notícias da vida da cidade, do que avistava do alto, dos beijos dos amantes ao entardecer sob a sombra do seu pedestal, dos pequenos que ali se sentavam a aguardar a chegada dos pais após a escola. Por vezes deixava escapar um lamento sobre o formigueiro de ter de permanecer tantas horas hierático, enquanto o sol se não punha, ou sussurrava queixumes sobre a humidade ou o vento incessante dessa noite.

Ana, a criada, com uma infinita paciência e com a lentidão que a idade e o reumatismo impunham, interrompia com doçura o ritual da conversa, lembrando a Mariana que a aguardavam à mesa para o pequeno-almoço e Mariana saía a correr pelas escadas abaixo, indiferente aos chamamentos da velha ama, ó menina, ó menina, que ainda cai e parte uma perna, olhe a mãezinha que se apoquenta!

Quando dois anos antes se mudaram para aquela casa, Mariana não sabia quem era aquele senhor grande, de bigode farto e braço esticado, que apontaria o infinito se entre o infinito e o braço não se erguesse, solene e imponente, a casa de D. Gregória. 

De todas as pessoas da aldeia sobre quem Mariana questionara o velho General, D. Gregória tinha sido a única que o fizera desviar a conversa. Da primeira vez Mariana pensou tratar-se de uma distracção, mas quando, dias depois, o questionou directamente sobre o que andaria D. Gregória a fazer nos seus terrenos da Atafona de que toda a gente falava, percebeu que esse era tema sobre o qual nunca obteria respostas, e educadamente passou a evitá-lo. 

chuva ínvia




Esqueci-me de como chove nessa rua 
quando os grilos se calam 
e as margaridas são apenas
murmúrios 
coloridos 
navegando no teu olhar

A tua rua, inteiramente minha
naquele tempo, eram dois passos
galgados à pressa para acabar num odor 
a rosmaninho, que me deixavas nos beijos

Notei que caiu o número da tua porta
talvez não fosse essa a tua porta
ou a tua rua. ou outro o número
não me recordo.

Perco-me hoje por entre
esta lonjura onde não acaba o asfalto

Ainda chove, na tua rua, 
ou era eu a chuva que caía?

Lídia Ponti

foto extraída da net

domingo, 15 de julho de 2012

testamento vital



"Trinta anos em que julguei conhecê-lo, para me dar agora conta de quanto estava errada! De como é frágil, afinal, a fortaleza quando a água serena, mas persistente, lhe vai erodindo os alicerces. Como explicar este pedido que me faz, de mãos cruzadas sobre o peito, eu a a evitar o toque e o seu olhar!

Quando a morte nos sussurra com malícia o código com que abriremos a porta do inferno, diz-se, mostra-nos o balanço do que foi a nossa vida para, perversamente, nos desesperançar  da salvação divina. Porém, lucidamente quantas vezes insuspeitadamente - apressa-se o moribundo a  pedir desculpas aos que ficam, na tentativa de salvar, neles, a memória do que foi. Mas tu não pedirás desculpas!
E como terias desculpas a pedir se fosses capaz, por uma vez que fosse, de te vestires da humildade que sempre desprezaste e que seria tão útil neste momento" - não lhe falou e ajeitou-lhe a máscara que o mantinha vivo, como o faria antes, quando ele não dependia dela e ela lhe ajeitaria a máscara porque sim, porque era assim, tinha de ser assim.
"Talvez pense que carinhosamente o retratarei com doçura, para lhe aligeirar o caminho, mas se assim for, está enganado!" – pensou, antecipando o prazer da perfídia da verdade - "sempre levei muito a sério os pedidos que me fazem, para mais de um moribundo, e pretendo cumprir a tua última vontade com o mesmo rigor que me acusavas de usar nas tarefas «comezinhas», «pequeninas, de ser pequenino como tu», repetias-me, «a desmerecer tanto tempo e tanta minudência»; «incapaz em coisas grandes",  lamentavas, “que pena que resumas a tua vida ao ocupar o espaço do teu corpo”, ironizavas! E eu ouvia-te, mantendo obstinadamente o meu labor de formiguinha paciente mesmo nas coisas mais banais, para que o pensamento se agarrasse com força às tais pequeninas coisas e não fosse tentado a revelar-se no olhar, nas palavras, nos gestos, não denunciasse os sentimentos que tentava adormecer. 

Sei hoje, no entanto, que o fazia sobretudo para te aborrecer; porque poucos aborrecimentos podia dar-te sem represálias (quanto tempo perdido…) e a minha indiferença (quanta simulação...) aborrecia-te, embora nunca o confessasses!

Será uma espécie de irónica vingança poder dizer-te, a teu pedido, o que penso a teu respeito. Dizer, portanto, sem remorso, o que estava destinado a guardar para mim. 
Indago-me genuinamente sobre o porquê! Pensarás que serei incapaz da crueza da verdade, ou não a temes?  Acreditarás no poder redentor das palavras que te serviriam de preparação para o inferno? Talvez suponhas que usarei de piedade!
Piedade! 
Um sentimento de que jamais fizeste uso em vida – noto-te surpreso, como se me adivinhasses os pensamentos! Sim, em vida, porque não é vida o que agora se vislumbra nos teus olhos. Piedade, «o sentimento piegas, adormecente, incapacitante, de gentinha sem garra nem ideias, nem ousadia» … as tuas palavras fazem eco na minha memória!"
Antes de iniciar o retrato parou um pouco, para o aconhegar. Puxou-lhe o cobertor até ao pescoço; ajeitou-lhe a almofada para que estivesse confortável quando as suas palavras de mulher contida se transformassem no espelho da sua existência -" por uma vez na vida, que alguém ouse dizer-lhe o que sente!" E soube nesse momento que, dos 30 anos de casamento, seria a vez em que mais palavras diria sem um olhar censor, uma palavra amarga cortando-lhe a vontade de se pronunciar.

- "Mas porquê agora?" - questionou!
- "Porque quero saber como me vês!, disse entre duas penosas respirações! Se sabes o que fui para ti, porque o fui, que o fui por ti!" - notou-lhe ansiedade nas palavras, suportada pelo  "fui" repetido a adivinhar o fim.

Estranhou a quietude, o ar de quem se abandona ao veredicto do juiz como se o desejasse por merecido, ou do crente que ouve, do padre, o rol de padres-nossos e avé-marias que servirão de apaziguamento à ira divina.
E preparou-se para o retratar, com um misto de coragem enrigecida pelo ódio, e de receio, não fosse o opressor ressurgir de novo, daquele corpo magro, inerte, em redor do qual quase podiam vislumbrar-se as mãos da Moiras na procura ansiosa do fio da vida para o cortarem de um só golpe e o conduzirem a Hades.
Neste momento, antecipando a insuportabilidade da descrição que pedira mas não teria coragem de ouvir, agarrou o peito, como se pretendesse evitar que, no momento derradeiro, um sinal de humanidade contradissesse toda a sua vida; deixou escapar um esgar irónico de quem é surpreendido perante uma arma cujo tiro sabe ser incontrolável e deixou-se ir, na viagem tenebrosa em que a fizera viver durante tantos anos.
E só então ela pode abrir a mala onde guardava as humilhações, as libertou e, descalça, seguiu o seu caminho, sentindo sob os pés o calor aconchegante do sol nos trilhos novos.

sábado, 14 de julho de 2012

Acolhimento


SÊ O OUVIDO ONDE RESSOA A MINHA MINÚSCULA EXISTÊNCIA
AMIGO É O QUE OUVE OS MURMÚRIOS INDIZÍVEIS.

Lídia Ponti
Pintura: René Magritte

Flambé de truta com geleia de rosas brancas


Matei hoje pela segunda vez e não me arrependo! Não é que eu não tenha muito respeito à vida, mas há pessoas que não merecem viver, porque incomodam quem pode melhorar o mundo.

Talvez fique presa muitos anos. Ou talvez não! De qualquer modo, não me importará sabê-lo, desde que me dêem trabalho na cozinha o que, pensando bem, será muito improvável!

Não me lembro exactamente como se passaram os factos, nem a razão porque eu, que abomino a alvorada, me determinei a levantar-me cedo para dirigir-me a sua casa,  tocar à campainha a pretexto de uma qualquer conversa. Quando me abriu a porta e viu o brilho dos meus olhos e, na minha mão, brilhando mais que eles, uma faca de trinchar carne, prostrou-se de joelhos a suplicar-me que o poupasse e prometeu-me coisas que jamais me satisfariam.

Creio que algum sentimento de desconforto terá ficado oculto desde a ceia do dia anterior, e se manifestou contra a minha vontade, num momento de alguma sonolência dos sentidos.

O meu advogado não se conteve e sorriu quando lhe contei das minhas razões; o Ministério Público não precisou de grande investigação para obter provas de que fora eu a autora do homicídio. No julgamento, pediu uma condenação vigorosa para quem - segundo as suas palavras - " tinha patenteado um tão absoluto afastamento dos sentimentos mínimos de piedade e um desprezo tão acentuado pelo valor da vida humana". Desvalorizou a confissão, porque me tinha recusado a contar tudo; mas eu tinha contado tudo! Enfim, contei tudo o que merecia ser contado.
De seguida sentou-se, afirmando-se convicto de que seria feita justiça; embora, em bom rigor, nunca especificasse qual a decisão justa no meu caso. 

Houve um momento em que suspeitei ter merecido a solidariedade e simpatia de um velho juiz-asa que me olhava, com aparente ternura; mas mal esta sensação começava a reconfortar-me, já o juiz meneava a cabeça e atirava para o ar com desprezo: «por causa de cozinhados, tch!» .

Apeteceu-me gritar-lhe que não foram os cozinhados, mas a incapacidade de um boçal em apreciá-los. Que o meu erro nada tinha a ver com tempos de cozedura, com grau de xaropes ou consistência de molhos, mas com o facto de, após tantos anos de solidão, o meu coração ter perdido a sagacidade e se ter deixado enlevar por um Adónis impreparado para iguarias, harmoniosas, requintadas - delícias terrenas que haviam de ficar na história da restauração de Lisboa, ao lado dos restaurantes de nomes que apenas homens endinheirados pronunciavam com naturalidade. Mas não me pareceu necessário enfatizar uma evidência! 

Que percebem os juízes de boa comida, se nunca provaram a minha! Eles, que frequentam sempre o mesmo restaurante com a rigidez monástica de uma andorinha. 

Certa vez, um grupo deles entrou-me pelo restaurante dentro. Andavam à procura de outro poiso - disseram-me ; se apreciassem a minha cuisine, fariam do meu sítio o seu local de tertúlias. Eu não me importava que aquele fosse o seu novo local de tertúlias, desde que apreciassem o resultado de longas noites de experiências numa cozinha tão asséptica e tão milimetricamente disposta que mais facilmente pareceria um laboratório, que o reino de Pantagruel. 

Com a carta na frente, ficaram largos minutos trocando opiniões e fazendo ares, ora de espanto, ora de questionamento, ora de surpresa. Dirigi-me ao grupo julgando-os indecisos sobre a escolha, evidentemente difícil, entre o pato au foie-gras com molho de whiskie e o peixe-galo com arroz de algas verdes. Para minha surpresa, a indecisão prendia-se com a escolha do tema da discussão para o almoço!

Irritei-me perante tanta indiferença, tirei-lhes violentamente a carta e acrescentei à mão, no cimo da lista dos pratos do dia: «tertúlia: 50 euros». 

Perceberam. Levantaram-se. Foram-se embora proferindo latinices que seriam seguramente impropérios.

Que azar o meu, que um destes comensais fizesse parte do tribunal que me julgou! Se ao menos tivessem provado o pato, ou o peixe-galo, talvez hoje eu não estivesse presa.  

A noite, forrada de silêncio e vestida do enevoado pardacento das horas, é o período mais propício ao trabalho criativo. Quase sem esforço, desfila uma passerelle de sofisticados sabores, requintados odores. Depois, basta-me procurar soluções gastronómicas que lhes dêem consistência e textura. 

Também assim foi naquele tempo de espera, entre o encerramento da audiência de julgamento e o momento do veredicto final. Nos primeiros dias, porque não queria pensar; nos seguintes, para matar a ociosidade; depois, por necessidade de artista, incapaz de contrariar a torrente de ideias geniais, aptas a satisfazer as mais exigentes papilas gustativas!

Dir-se-ia que a espera me aguçara a sensibilidade.
A ocasião exigia minúcia e recato, não fosse a minha colega de cela roubar-me as receitas com que pretendia surpreender os muitos clientes que haviam de estar à espera da minha libertação para voltar a comer bem.
Era uma questão de dias. 

Afinal, como poderiam manter-me presa sabendo que a culpa não fora minha, mas do triturador sem gosto que se me atravessou na vida, que me pedia ostras cozidas e acreditava que as trufas nasciam em árvores!

Começava até a agradecer estar presa. 
A tranquilidade fria da prisão potenciava a efervescência dos sentidos e o requinte da imaginação. Era como um retiro, apenas tendo a desfavor a indefinição do seu fim, mas a enorme vantagem da gratuitidade e a noite, longa, à minha disposição.

Porém, este bem-estar começou a desfigurar-se quando substituíram a surda-muda que compartilhava a cela comigo, por uma mulher sem maneiras nem pudor, que levantava a saia para ajeitar a blusa com puxões secos e desconcertantes, deixando visível a coxa grossa de quem puxa mais vezes o arado que o cavalo, e cujo pesado corpo não se aquietava, provocando com o embate das suas carnes contra o catre, um restolhar outonal de folhas. 

Estar só nunca me assustou.
O único receio foi apenas o de que a solidão, cansada de si mesma, se tornasse meu títere, impondo-me o convívio com as minhas obsessões e os meus demónios, aproveitando-se das minhas  fragilidades; que me fizesse figurante de histórias criadas pelos medos, compelindo-me a participar nelas. Nesses momentos duvidava de tudo. Acreditava momentaneamente numa coisa e no seu contrário. Tal como me aconteceu numa daquelas noites menos inspiradas, nesse espaço de algibeira com dois corpos colocados a par, como fatias de pão à espera do recheio. E questionei tudo: os porquês do meu acto, as condições em que o executei, as consequências. Tudo!
Bom, tudo não! Nunca questionei a minha genialidade. 

Ingrato! Sensaborão! Rural! Ignorante sem paladar...! 

Por minha vontade ficaria horas a adjectivar a sua insignificância ... e enquanto o denegria, dei-me conta de que não sentia pena. Nem remorso. Que poderia dormir sossegada, planeando novas delícias para quando fosse liberta – se ao menos alguém me trouxesse papel e lápis! 

O único impedimento à sublimação do prazer era o ressonar monocórdico, constante e aflautado da minha companheira de cela. Se quer ressonar, pelo menos que o faça com convicção, sempre desprezei ratos querendo parecer-se com touros. Quem foi condenada por matar o vizinho que lhe mudou os marcos, podia ostentar um rugido nocturno que fizesse jus ao feito! 

A repetição tornava aquele som cada vez mais incaracterístico, mas cada vez mais próximo, cada vez mais o mesmo, interferindo nas doses do borrego assado com molho de frutos silvestres acompanhado de batatinhas novas, a impedi-las de alourar no forno da minha imaginação. Tentei controlar-me, mas a persitsência começava a enervar-me mais do que auxiliares de cozinha apanhados a usar, nos cozinhados, o azeite fino de aspergir saladas.

Sossegou durante uns minutos e redobrei no entusiasmo da criação!  

Preparava um cozido de pescada com papas de abóbora polvilhada de canela e gengibre moídos, quando recomeçou. Aquela repetição sonora de mau-dormir, a dificultar-me a concentração. O cheiro fresco e doce da canela deslizando acetinadamente pelo fio da faca muito afiada, a confundir-se com o cheiro de madeira a desfazer-se por causa daquela motosserra de bateria inesgotável – a aurora quase a anunciar-se e ela ali, a abrir e fechar a boca como peixe debatendo-se no areal da Costa Verde ansiando por soltar-se das redes de arrastão. 

Cala-te!, insisti três vezes. 

E das três vezes o eco trouxe-me vozes de outras celas impondo-me silêncio. E a roliça mantinha-se a gemer, ignorando os estragos. 

Quando a meio da decoração de um bolo de baptizado a camponesa atarracada e engordada a pão de milho e azeitonas estremeceu, outra vez, no seu eco das profundezas, vi-me de repente perto dela, lancei-lhe as mãos ao pescoço e fiz tanta força como só me lembrava de fazer para amassar a bola de carnes de Trás-os-Montes antes de a por a levedar. 

De princípio ainda se ouvia um silvo a debater-se para se libertar. Depois esse ténue sinal foi enfraquecendo cada vez mais. Até que por fim pude, em sossego, colocar por sobre o glacé mais alvo que alguma vez consegui, uma pequenina estátua onde dormitava, risonho na sua inocência, um rosado recém-nascido, tranquilo por poder descansar numa cama feita de um bolo tão suave que ninguém teria qualidade suficiente para apreciar.


Lídia Ponti

pintura: "Sobremesa" Botero

quinta-feira, 12 de julho de 2012

desejo ...

QUERO QUE ME DESEJES TANTO COMO TÂNTALO A ÁGUA...
PROMETO NÃO SER O TEU SUPLÍCIO!




Fotografia: Eduardo Rosas



quarta-feira, 11 de julho de 2012

libertemos as palavras




Libertemos  o ruído das palavras!
Não queiram perturbar
com os seus acentos soltos
os  corpos amantes inertes de cansaço
Mordamos o silêncio!
Deixemo-lo aninhar-se no final suspiro
quando os nossos risos se resguardam na margem 
ofegante dos teus olhos, e o vagabundo 
tempo se aquieta para que tu, meu rio,
te espraies ternamente sobre mim.


Lídia Ponti


Foto: Tamara Lempika

segunda-feira, 9 de julho de 2012

porque hoje estou assim...



Hoje amanheci mais cedo,
noite lá fora ...

Amanheci - porque amanheço sempre - sem
planos, nem prazos, nem certezas, nem coisa alguma
que valha um nota de rodapé ...
amanheço com a mesma naturalidade com que
me esvairia, se fosse um sol em ocaso no horizonte.

Mas amanheci mais cedo, hoje, inevitavelmente ,
com gritos de palavras ululantes
com urros de ditongos, longas frases
interjeições aflitas, reticências
ríos de tinta à beira do meu leito e por lençóis
 folhas esvoaçantes 

Amanheci mais cedo, hoje, para exorcizar palavras!

Lídia Ponti